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A livreira guerreira


Trabalhar em livraria foi uma missão: ajudar a mãe Vanna Piraccini, famosa livreira do Rio de Janeiro, então com 70 anos, a administrar a tradicional livraria Leonardo da Vinci.

Ela abandonou a medicina e se sentiu à vontade no universo dos livros, onde havia crescido. Mas diz ter lhe faltado vocação para o comércio; além de tudo, teve de assumir o negócio na mesma época em que surgiram as megastores, a internet e a Amazon, principal concorrente da Da Vinci, então especializada em livros importados.

Ativista desde estudante, Milena usou a experiência de militante política na luta pelos interesses da classe livreira. Ajudou no fortalecimento da AEL-RJ. Na sua gestão como presidente, a entidade ganhou sede própria no centro do Rio.

Foi pioneira na defesa da Lei do Preço Fixo para o livro, quando em 1999, no III Congresso de Editores e Livreiros, entregou um abaixo assinado de livreiros fluminenses com a reivindicação.

“Ela vai morrer atirando” disse um colega livreiro na época em que já se comentava no meio as dificuldades por que passava a Leonardo da Vinci. Mas o fôlego de empresária, de alguém que se define como uma capitalista relutante, foi se acabando.

Em fins de maio de 2015, em entrevista ao jornal O Globo, Milena tornou pública a situação insustentável da livraria, e a necessidade de passar o negócio adiante. A notícia gerou comoção entre cariocas e fãs de todo o país, e mesmo do exterior, da livraria que se tornou patrimônio cultural da cidade.

“Pior que um fim horrível é um horror sem fim”, disse Milena diversas vezes nos nove meses que sucederam a notícia e reinou a dúvida se a livraria iria continuar. Por fim, em fevereiro de 2016, o livreiro Daniel Louzada, ex- Saraiva, fechou contrato e reabre a livraria em setembro com o mesmo perfil, mas renovada inclusive por um café.

Milena continua entre livros. Ainda não conseguiu uma solução para negociar via internet o acervo que levou da Leonardo da Vinci, guardado no sítio da mãe. Disse ter muito interesse em vende-lo mas não sabe como proceder. Volta a estudar saúde pública, em especial o vírus da zika e pretende ser tradutora. Sua experiência na luta pela regularização do mercado livreiro a mantém como consultora da AEL.

 

A Leonardo Da Vinci -  A livraria foi a minha irmã mais velha, nasceu dois anos antes. É de 52 e sou de 54. Era bem pequena quando nasci; duas salas no décimo oitavo andar do edifício Delamare, na Presidente Vargas. Mudou para o edifício Marquês de Herval em 56.

Sempre fez parte da minha vida, porque tanto meu pai, o fundador, quanto a minha mãe trabalhavam nela. Minha mãe passou a se dedicar em tempo integral depois que meu pai morreu em 65.

Me lembro que, com nove, dez anos, me pediam para entregar livros a um cliente nosso vizinho no Leme. Às vezes paravam o carro em frente a um prédio e me pediam para fazer uma entrega.

Também ia à livraria aos sábados para arrumar livros em ordem alfabética ou numérica como a coleção Que sais-je?, hoje com mais de 3000 títulos.Fazia a separação dos pedidos dos clientes. Não era trabalho, era uma distração, podia ficar junto a meus pais, que via pouco durante a semana, não me incomodava nem um pouco.

A Da Vinci era muito frequentada por políticos e intelectuais. Trazia novidades do exterior. O pensamento mais avançado, basicamente francês, chegava aqui via Leonardo da Vinci. Santiago Dantas, Guerreiro Ramos, Arnon de Mello, que era o pai do Fernando Collor, frequentavam.

Sempre teve uma fama entre os escritores. Quando o meu pai morreu o Drummond fez uma crônica dedicada a ele chamada O Livreiro.  A livraria estava em concordata, quase em pré-falência.

Meu pai cometeu o desatino de enveredar por uma aventura editorial. De certa maneira foi precursor, publicou uma coleção infanto-juvenil. Só não sabia que não bastava editar um bom livro, tinha de saber como e onde distribuir.

A primeira vez em que realmente trabalhei ali foi em 73, quando a livraria pegou fogo. Tinha terminado o segundo ano na faculdade e passei as férias ajudando minha mãe. Desocupamos o espaço destruído pelo incêndio e minha mãe alugou uma loja em um edifício próximo, recém-inaugurado, na Rua Melvin Jones, hoje Rua da Ajuda.

Trabalhei direto, de dezembro a fevereiro. Quando voltei às aulas, fiquei na parte da noite. Em março parei porque arrumei trabalho no departamento de pesquisa do Jornal do Brasil.

O incêndio, em 6 de dezembro de 73, foi criminoso. Começou em uma boate fechada, em recuperação judicial e sem luz, onde hoje é a Livraria Berinjela. Teve início acidental, umas velas encostaram nas cortinas da boate, e o fogo “milagrosamente” atravessou um corredor de quatro metros até à livraria.

No incêndio morreu um marceneiro que fazia obras na livraria, e teria voltado para pegar as ferramentas quando o fogo começou. Provavelmente viu algo que não deveria, o que faziam as pessoas que estavam ali. Não posso dizer quem, bombeiros, pessoal do DOI CODI que o deixaram morrer. Seu corpo foi encontrado dias depois.

Nunca houve investigação. Eram os últimos dias do governo Médici, tempos duros. A livraria não era querida do poder, naquela época. Foi um período em que outras livrarias também sofreram, como a Civilização Brasileira, que também pegou fogo. O ano de 73 foi muito difícil para a história do Brasil. A linha dura estava ouriçada.

Com a chegada da internet, a Leonardo da Vinci, que vendia muitos livros importados, foi bastante afetada. As pessoas iam lá, escolhiam e compravam pela Internet. Nos últimos anos, já vendíamos muitos livros nacionais, 50 por cento de nosso acervo era de nacionais.

Tenho um comentário a fazer: o Sindicato Nacional dos Editores fica num edifício ao lado da livraria, cerca de 20 metros, exatamente no prédio para o qual nos mudamos depois do incêndio. Nunca os presidentes ou principais diretores foram nos visitar, com exceção de Carlos Augusto Lacerda, da Nova Fronteira, hoje Lexikon, e Eduado Salomão.

O Paulo Rocco foi uma vez, para o lançamento de um livro do consulado italiano. Já com os editores independentes, como Marcus Gasparian, da Paz e Terra, Isabel e Zyg, da Mauad, Araken,da Contracapa, Cristina Warth, da Pallas, Rejane, da Autêntica, entre vários outros, sempre tivemos um excelente relacionamento.

Muitos editores tinham preconceito. Achavam que o livro importado concorre com o livro nacional,  mas não têm ideia de que nós também vendíamos muito livro nacional, sobretudo de fundo de catálogo. Esquecem que, como dizia Millôr, “um livro puxa outro”.

A Livraria Leonardo da Vinci primava pelo fundo de catálogo, pelo livro difícil. As pessoas diziam - “quando quiser um livro difícil já sei onde procurar”. Eu retrucava - “não, por favor, venha procurar um livro fácil também”.

Os livros se tornam difíceis porque têm três ou quatro anos de publicados. Não acho que um livro com essa idade esteja velho. O tempo do livro é lento; para ser escrito, para ser lido e para ser vendido. Muitas vezes o sucesso depende do boca a boca.

Um filme, uma série televisiva muitas vezes ressuscitam livros que estavam esquecidos. Os clássicos de ciências humanas podem ter 50, 100 ou até 1000 anos de publicados.

Desde que anunciamos que iríamos fechar com a notícia no jornal em maio de 2015, até a assinatura do contrato de venda em fevereiro de 2016, foram momentos muito difíceis. Nove meses, uma gestação. Muito demorado, muito sofrido, muito trabalhoso.

Dizia - “pior que um fim horrível é um horror sem fim”. Não foi um fim horrível, pois a livraria continua e era isso que eu queria. Foi a solução possível.

Torço para a nova Leonardo da Vinci dar certo. Todos os meus votos de sucesso para o Daniel Louzada. Sucesso, força, coragem! Que seja como a Granado, os sabonetes Phebo, a Colombo, que mantiveram a qualidade e identidade, mesmo depois de mudarem de dono.

 

A livreira - Em fins de 96, decidi ir trabalhar na livraria para ajudar minha mãe, numa espécie de missão familiar, no ano em que ela fez 70 anos. A livraria estava bem. Achei que deveria ajudá-la, pois ela completava meu orçamento. Eu estava separada, com um salário e pensão muito pequenos e dois filhos.

Mas se naquela época soubesse o que sei hoje, teria ficado na Fiocruz. Pediria licença sem vencimento, redução da carga horária. Pedi demissão e ganhei 24 mil reais. Dava para comprar pouco mais que um fusca.

Fui sem saber nada de administração. Nunca tive consultório particular, sempre fui funcionária pública. Não entendia nada de negócios e ainda entendo pouco. Era professora na Fiocruz. Adaptei-me mal. Não tenho qualquer vocação para general ou coronel, vigiar clientes ou funcionários, se estão roubando, ou se estão no Facebook.

Minha prática como médica pediatra, e depois professora, era cuidar e orientar pessoas. Não tem nada a ver com as qualidades de uma mulher de negócios. Não sabia nada. Fiz um curso, em 2005, MBA em gestão empresarial na Coppead, do Fundão. Um curso pesado.

Eles diziam e repetiam - ”crescer ou perecer”, “ se endividar”, “ se alavancar”. Alavancar é pedir dinheiro em banco. Sempre tive horror a isso. Minha mãe tinha trauma da concordata do meu pai e jurava que nunca pediria dinheiro em banco.

Você tem, ou não, jeito para negócios. Não é para lamentar, é uma constatação: eu não tenho. Por isso, quis muito que alguém retomasse a livraria: sangue novo, novas ideias, dinheiro e capacidade de gestão.

Na Europa e nos Estados Unidos, as livrarias independentes estão sendo retomadas por pessoas mais jovens com iniciativa, dinheiro, energia e entusiasmo. Trabalhei na Da Vinci 19 anos e meu fôlego foi acabando. Não era contra abrir um café dentro da livraria, mas não tinha energia para isso.

Definitivamente não tenho vocação para comércio. Livros sim. O universo dos livros é fascinante. Sempre te desafia. Ver todo dia que você não sabe nada - “Tudo que sei é que nada sei”, como disse Sócrates.

No universo da livraria você se confronta com sua limitação. Torna-se humilde. Constata que nunca vai saber nem um por cento de tudo que está nesses milhares de livros. Por outro lado é estimulante porque todo o tempo desperta sua curiosidade.

Trabalhar com livro é desafiador e interessante, o que não tem nada a ver com ser mulher de negócios. Tem um livro americano sobre livreiros que não li mas cujo o título é muito bom: “Os capitalistas relutantes”.

Em geral os livreiros são isso, apaixonados pelo ofício. O que não quer dizer que sejam bem sucedidos em negócios. Também sou uma capitalista relutante, uma empresária relutante. Não foi uma questão de vocação, mas de necessidade.

Uma das coisas mais gostosas na profissão de livreiro é você abrir um catálogo e poder escolher. Eu escolhia os livros das editoras porque os achava relevantes. Você ter orgulho de descobrir um livro.

Agora o pessoal chama de curadoria. Acho pedante e ridículo. O papel do livreiro é escolher o seu estoque. O livro não é uma obra de arte para ser exposta. Está ali para ser vendido.

No Brasil as pessoas têm vergonha de trabalhar. O ideal, no imaginário da cultura brasileira, tanto de ricos quanto de pobres, é não trabalhar. Viver de renda, ganhar na megassena. Trabalho é algo que diminui o outro. Algo que você obriga o outro a fazer. É uma das piores heranças da escravidão.

O termo curadoria vem de pessoas que não querem assumir seu ofício como livreiros. Eu nunca tive vergonha de fazer pacote de presente, atender telefone, fazer encomenda. Se for preciso, limpo o chão, tiro a poeira.

Nunca achei que trabalhar era uma coisa menor. Para recrutar funcionários, usava o lema do Neném Prancha,  que dizia que jogadores de futebol tinham de ser como sorveteria, “ter muitas qualidades”.

No Brasil as pessoas acham que quem é servido é superior a quem serve. No Rio, as pessoas não dão bom dia nem pedem “por favor” quando compram um café. Lembro de um cliente que jogou um livro na minha mesa dizendo “ Meu desconto”.

Eu respondi “Boa tarde, se disser por favor vai ficar mais fácil”. Acho que tenho facilidade para lidar com o público, com a comunicação, mas não tenho paciência para pessoas mal educadas e acabo me tornando mal educada também.

Uma vez um jornalista famoso encomendou um livro da Inglaterra. Minha mãe me ensinou a aprender com os clientes, pois eles têm mais domínio sobre a área em que atuam. Então pedimos mais de um exemplar do livro, um para ele outro para a livraria.

Um dia ele voltou e viu o exemplar do livro encomendado exposto na mesa e reclamou comigo. Achou que estávamos nos aproveitando do conhecimento dele. Eu disse que ele estava sendo muito selfish. Nunca mais voltou à livraria.

Mas esse é o papel do livreiro. Colocar o livro à disposição do público, fazer a informação circular. Mostrar o livro que o cliente não sabe que existe. Não iria dizer que o livro foi encomendado por fulano, porque isso já seria violar a intimidade da pessoa.

Não fui tão bem sucedida quanto a minha mãe, os tempos mudaram. A internet mudou completamente o mercado e não só as megastores mas também lojas virtuais do Ponto Frio, Extra e supermercados que vendem livros a preço de custo ou mesmo abaixo. Isso destrói o varejo  porque a livraria passa a ser só uma vitrine.

Nunca quis ocupar o lugar da minha mãe. Sempre reconheci que ela tinha muito mais know how, experiência e sucesso como mulher de negócios. Tirou a livraria do nada, da concordata, quando o meu pai morreu e novamente depois do incêndio. Comprou imóveis. Suceder é uma coisa. Ocupar o lugar é outra.

 

A leitora - Conviver com a livraria foi um privilégio. Podia pegar o livro que quisesse, depois devolvia. Meus pais me incentivavam e me permitiam ler tudo, de quadrinhos a livros policiais, ficção científica. Recebíamos muitos quadrinhos franceses. Aprendi a ler em francês com Tintin. Li muito Príncipe Valente para meus filhos.

Nunca tive nenhuma censura. Isso incentivou meu gosto pela leitura porque era um prazer, uma diversão.  Na nossa casa a televisão chegou bem tarde. Era coisa cara, um luxo.

O problema de quem gosta de ler é ter pouco tempo para ler tudo o quer.  Quem gosta de livros acumula: “esse eu quero, sei que vai sumir então vou comprar e guardar.” Tenho aquela fantasia, ficar numa ilha sem nada para fazer, podendo ler.

Acabei de ler um livro fantástico Vozes de Chernóbyl da Svetlana Alexiévitch.Ganhou o prêmio Nobel ano passado. Na época, a única livraria que já tinha esse livro, em inglês, era a Leonardo da Vinci. Só depois do prêmio o Brasil se deu conta de que ela é uma escritora impressionante.

Chorei várias vezes. É pungente. Depoimentos de pessoas da Bielorússia afetadas pela catástrofe nuclear. De viúvas até crianças, engenheiros da área nuclear, militares, camponeses, pilotos de helicópteros, políticos, jornalistas, médicos. É algo que só pode ser um livro, não cabe num filme, são centenas de depoimentos, você precisa ler aos poucos, senão não aguenta... É também uma crônica sobre o fracasso da União Soviética.

Entre os autores que me marcaram estão Camus. A primeira vez que fui ler O Estrangeiro era muito nova e aquilo me deu um nervoso. Larguei o livro. Anos depois peguei A Peste. Me marcou muito e fui atrás dos outros, um atrás do outro. Quando você se apaixona por um autor pega um livro, depois outro e outro.

A Svetlana, quero ler outro dela sobre as mulheres russas soldados na Segunda Guerra Mundial. Vou querer ler tudo, em português, inglês, ou francês. Marguerite Yourcenar, li Memórias de Adriano depois quis ler vários outros.  Clarice Lispector também. No início, mais jovem,  tinha uma certa resistência. Depois me apaixonei.

Entre os meus preferidos também está o escritor italiano Curzio Malaparte. A gente vai descobrindo os autores ao longo da vida.

 

Livrarias - Não fui uma livreira que tenha viajado muito. Mas vi uma livraria em Barcelona que gostei muito chamada La Central. Também é uma livraria internacional com livros em outros idiomas além do espanhol. Muito boa, bonita, moderna.

Tinha uma livraria francesa também maravilhosa chamada La Hune, que fechou. Tinha muitas obras de ciências sociais. Mas a El Atheneo em Buenos Aires não gostei. É bonita do ponto de vista da arquitetura, um antigo teatro. Mas achei o estoque muito fraco, uma bagunça, e de forma nenhuma aquilo me encantou.

Tem outras livrarias em Buenos Aires, nas ruas transversais, muito melhores. Conversei com uma pessoa que disse: “Sempre que entro em uma livraria, compro um livro”. Comigo não é verdade. Tem livrarias que você entra e sai sem que nenhum livro tenha te atraído.

A livraria tem de surpreender o leitor. Trazer aquilo que a Internet não traz. Você nunca ouviu falar daquele autor, daquele tema, mas abre o livro e ”Olha só!” Esse é o papel da livraria.

A Internet te dirige. Eles usam programas de inteligência artificial e quando você compra um título, por exemplo, algum livro como a série Guerra dos Tronos ou Star Trek, lhe indicam “As pessoas que compraram esse livro também compraram tal e tal” . Fica só naquele universo restrito.

Uma boa livraria é para você passear por entre as estantes e ser surpreendido. Aqui no Rio há livrarias boas como a Folha Seca,  Argumento, a Travessa e havia muitas outras como a Pororoca e a Padrão. Estamos bem servidos. São livrarias que têm o olhar do livreiro. As livrarias são espaços de troca.

Entre os livreiros surgiram grandes amizades, também a partir do trabalho na Associação de Livrarias, como a Solange Whehaibe, o Glaucio Pereira, o seu Alberto Abreu, tão querido e de tanta saudade, o Rodrigo da Folha Seca, que apesar de ver pouco é muito querido, o Antônio Carlos da Galileu.

O Marcus Gasparian é uma pessoa de quem gosto muito. Nuno Pedroso, da FGV. Existe essa solidariedade profissional, espírito de corpo. Francisco Laissue, também gostava tanto dele. Acredito muito nas amizades construídas em cima do trabalho. Vivenciar e enfrentar os problemas juntos.

Você acaba ficando meio irmão dessas pessoas. Por isso que o livreiro indica outro livreiro. Eu brincava e dizia que todo cliente é um ser carente. Não obrigatoriamente carente de um livro. Carente de atenção principalmente.

Se você dá isso a ele, diz que não tem o livro, mas que o colega pode ter, dá a ele o Roteiro das Livrarias, a pessoa fica tão grata que vai voltar. Ela sabe que ali, mesmo que não encontre o livro que procura, vai ser atendida e alguém vai ajudá-la a resolver aquele problema.

 

A AEL - Me orgulho de ter posto a AEL de pé e me orgulho do Roteiro das Livrarias. Quando entrei a AEL era outra coisa. Reunia basicamente livreiros que trabalhavam com os didáticos. Não tinha sede.

Quando a primeira megastore, da Saraiva, foi inaugurada uma repórter do Caderno Ideias do Jornal do Brasil resolveu fazer uma matéria com livreiros independentes do Rio. Marcou uma foto na Argumento e fomos eu, o Rui Campos,da Travessa, o Marcos Gasparian e a Laura,da Argumento, Claudia Amorim, da Malasartes, Cristiane, da Timbre e vários outros livreiros independentes, 10 ou 12.

Fizemos a foto e nos sentamos para conversar no café Severino. Foi dito que tínhamos de nos unir, criar uma associação de livrarias independentes. Mas eu argumentei: “Não! Já existe uma associação. Vamos aderir a ela”. Aprendi com o movimento estudantil e movimento sindical; não dá para ficar criando novas entidades a toda hora.

Você fortalece e muda as antigas. Infelizmente a Libre (Liga Brasileira das Editoras Independentes) não fez isso. Se entrassem para o SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) ou para a  CBL (Câmara Brasileira do Livro), já teriam tomado conta há muito tempo. É só olhar para o número de votantes nas eleições, ridículo.  São três, quatro votantes do Rio de Janeiro na eleição da CBL. Era sócia, eu mesma vi.

Então resolvemos nos encontrar uma vez por mês na Argumento. Quando saiu a primeira edição do Dicionário Houaiss, compramos coletivamente através da Leonardo, porque, pela primeira vez, um livro importante saia da editora sem preço de capa.

Fazendo um pedido grande, o preço era menor, e viabilizava a venda pelos livreiros independentes. Também fizemos isso para o primeiro Harry Potter que também não tinha preço de capa. Não adiantou, as Lojas Americanas logo passaram a vender abaixo do custo.

Dalí passamos a nos filiar à AEL. Em 99 fomos, junto com Ítalo Novello, então um dos dirigentes da rede Sodiler, fomos ao III Encontro de Editores e  Livreiros, no Costão do Santinho em de Florianópolis com um abaixo assassinado pelo preço único. No Brasil,a AEL foi pioneira nessa reivindicação há 17 anos.

Sempre tive essa coisa coletiva e tinha visto na França. Sabia como havia sido a luta pelo preço fixo lá. Quando sai da Fiocruz fiz um curso de 15 dias em Paris para livreiros da America Latina.

Lá eles criaram uma associação para o preço fixo que foi liderada por um editor da Minuit e não por livreiros. Esse abaixo assinado pelo preço fixo foi entregue aos editores em setembro de 99, estamos em 2016. São 17 anos e até hoje ainda não temos o preço fixo aqui.

A Lei é importante. Espero que não seja tarde demais. Ninguém reclama do preço fixo para jornais e revistas. Os editores de jornais sabem que para viabilizar a distribuição em todo o Brasil, caríssima, não pode ter guerra de preços. Há o subsídio cruzado, a venda maior no sudeste banca a venda nas regiões mais distantes.

Se três perfumarias em um shopping vendem o mesmo produto a preços diferentes o consumidor sai dali e procura na internet ou outro lugar um preço melhor. Entende  que pode haver barganha. Por isso uma perfumaria como a l´Occitane pratica o mesmo preço em qualquer ponto de venda, do Shopping Leblon à drogaria Venâncio.

Com o livro não há mais a venda por impulso. A pessoa entra na livraria, examina o livro e procura um preço melhor na internet. Mas nem sempre a intenção vira gesto. Ela se esquece, perde a vontade, vai esperar o cartão vencer, e acaba não comprando.

Os editores que desviam a venda  com descontos predatórios dão um tiro no pé. Por mais que lamente o desaparecimento da Cosac Naify, uma excelente editora, eles cavaram a própria cova. No final, nenhum livreiro se interessava mais por ter os livros da Cosac nas prateleiras, por conta das promoções sem fim na internet.

O sonho de qualquer fabricante de bebida ou cigarro é ter pontos de venda na aldeia de índios, na porta da favela, no shopping de luxo.  A maior rede possível, um ponto em cada esquina. Os editores fazem o contrário, edições exclusivas para determinadas redes, uma aberração a meu ver. O consumo de livros só vai aumentar quando for tão fácil quanto comprar uma cerveja.

Basta pegar a lista dos mais vendidos e pesquisar na internet; estão à metade do preço nas Casas Bahia, no Ponto Frio e Lojas Americanas. Abaixo do preço de custo, com 50 por cento de desconto.

Isso é a destruição da venda por impulso, a destruição do valor simbólico do livro, a destruição do varejista independente. Parece que os editores estão fazendo  as escolhas erradas.

Depois disso a ANL adotou essa bandeira e a partir de então não há um encontro em que essas entidades não abordem o assunto. Mas os editores ainda discutem se um ano para o preço fixo é pouco ou muito. Um ano é pouco. Não é assim que funciona, nem na Europa, nem na Argentina ou no México.

 

A médica - Optei pela medicina como profissão porque queria ajudar a salvar o mundo. Muita pretensão. Em 68 tinha 14 anos. O mundo estava em efervescência: luta contra a guerra do Vietnã, Woodstock, Noel Nutels. Lia o Pasquim, Opinião, Movimento. Fui muito formada pelos jornais. A Imprensa era bem melhor do que o que temos hoje.

Comecei a fazer parte de grupos de estudos de marxismo no colégio Franco Brasileiro.  Fiz o teste vocacional e deu assistente social. Com todo respeito aos assistentes sociais, fui fazer medicina, outro tipo de assistência, primeiro pediatria, depois  saúde pública.

Aqui no Rio trabalhei, como estudante de medicina, em favelas, no Jacarezinho, na Rocinha, junto com a associação de moradores. Depois de formada fui para São Paulo trabalhar na prefeitura de Diadema e em movimentos de bairro na zona sul da capital.

Sempre fui metida a fazer política. Em 74 houve as primeiras eleições, para deputado estadual e federal, durante a ditadura. Havia uma grande discussão entre votar nulo ou apoiar o MDB autêntico. Foi quando me aproximei das pessoas que defendiam a participação.

Com 20 anos, foi a primeira vez que votei e os autênticos do MDB deram uma surra em todo Brasil. Em 76 já fazia parte de um grupo político e fiz campanha para o vereador Antônio Carlos de Carvalho, um ex-preso político muito bem votado entre os universitários. Depois, foi a vez da campanha do Raymundo de Oliveira para deputado, o resto é história.

Eu era integrante de um movimento paralegal, com uma face clandestina e outra legal. Atuava em ambas as frentes. Mas nessa época já tínhamos feito autocrítica e estabelecido que era importante fortalecer o movimento popular, pela Anistia e por Liberdades Democráticas.

Havia movimentos de bairro, pela regularização dos loteamentos clandestinos, contra a carestia, por creches. Quando a luta armada mostrou estar errada houve um movimento pelo fortalecimento da luta do povo, a frente popular.  Meu marido participava do mesmo grupo político, mas saiu antes de mim. Também comecei a discordar de algumas práticas e depois também saí quando minha filha nasceu.

Em 83 voltei para o Rio porque meu marido arrumou trabalho no IBGE. Fiz o curso básico de saúde pública na Fundação Oswaldo Cruz e trabalhei como pediatra. Depois fui fazer o mestrado. Nunca tive consultório particular.

Trabalhei na Escola de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, orientei vários alunos de mestrado e fiquei na medicina até 1996 quando aderi ao programa de demissão voluntária do Fernando Henrique. Fui então para a livraria.

 

Depois da Da Vinci - Estou voltando a estudar saúde pública, no momento tenho me dedicado à epidemia de Zika.  Também faço um trabalho com o Kaizô Iwakami Beltrão, da Fundação Getulio Vargas, baseado em uma pesquisa do IBGE sobre consumo de material de leitura pelas famílias brasileiras, além de outra pesquisa sobre o vale livro do professor distribuído pela Prefeitura.

Penso em ser tradutora, algo que posso fazer até ficar bem velhinha. Estou em um curso ótimo, veja que coisa, fundado por um cliente da livraria que conheci, Daniel Brilhante de Brito. A professora, Ana Beatriz Braga, também era nossa cliente, e seu pai foi quem a levou até a livraria. O mundo dos livros é realmente pequeno.

Estou aprendendo a verter do português para o francês e a traduzir do francês para o português. Quem sabe depois passe para o romeno, preciso estudar, mas é uma língua cuja literatura é totalmente desconhecida no Brasil. Claro, não estou pensando em traduzir o Guimarães Rosa, nem Proust. Mas acho que posso abraçar esse ofício.

Talvez faça alguma coisa ligada à saúde pública e meio ambiente, gostaria muito. Já trabalho com o Sávio Teixeira, do Projeto Pão de Açúcar Verde, num esforço de recuperação ambiental, há nove anos. Ou seja, cem vidas eu tivesse, cem ocupações diferentes eu teria. Como só vou ter uma vida, posso tentar fazer muitas coisas nessa uma.