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Viva a diversidade


Natural de Belo Horizonte, Rui Campos veio para o Rio aos 19 anos,  convidado para trabalhar na Muro, livraria de Ipanema.  Mas o que o atraía, mais que o trabalho com livros,  era a possibilidade de morar na cidade.

Hoje é um dos mais bem sucedidos empresários do mercado livreiro carioca, fundador da Livraria da Travessa, que este ano completa 31 anos, com 7 lojas distribuídas entre Centro e Zona Sul , uma loja em Ribeirão Preto e outra recém inaugurada em São Paulo.

Com o perfil das livrarias contemporâneas, as lojas da  rede são centros culturais que, além de livros  têm CDs, DVDs, área de alimentação e promovem debates, clubes de leitura, contação de histórias e pocket shows. Somente ano passado fizeram cerca de 700 lançamentos de livros.

Antes da Travessa, Rui Campos trabalhou com figuras importantes do mercado como Aloisio Leite, sócio da Muro, que o ajudou no perfil de esquerda da livraria que combatia  a ditadura, e o casal Chico e Graça Neiva fundadores da Dazibao,  que fez sucesso nos anos 80.

Aberto a novas parcerias, Rui Campos mostra que mesmo entre concorrentes pode haver cooperação, como  na série de eventos comemorativos do Centenário da Revolução Russa que a Travessa vai promover junto com as livrarias Argumento, Blooks e Timbre.

Para ele, a função das livrarias é lutar contra qualquer tipo de partidarismo ou totalitarismo; “ Temos de ser plurais. Viva a democracia! Viva a diversidade!

 

 

Como foi a chegada da  Livraria da Travessa a São Paulo?

Lá é um trabalho muito  específico. Temos uma relação forte com toda a equipe do Instituto Moreira Salles; são frequentadores da livraria. Já tivemos a Travessa em quatro Bienais de Arte de São Paulo, com o acervo voltado para cada mostra. Também fazemos a livraria da FLIP , focada no trabalho de cada edição anual.  A livraria do CCBB também é focada nas atividades que acontecem ali. Eles perceberam que temos essa expertise e nos convidaram. Adoramos. Calhou que estavam fazendo esse magnífico prédio na avenida Paulista, que hoje é o centro pulsante e político do Brasil.  O convite foi irrecusável. Não foi uma estratégia: “Vamos para São Paulo”. A Travessa nunca se move assim. Ela sempre foi feita com trabalho e recursos do dia a dia. Também fomos para Ribeirão Preto por uma oportunidade; fomos convidados pelo Shopping Ribeirão Preto, que é espetacular.

Com uma rede em três cidades a Travessa ainda é uma livraria independente?

É difícil saber o que se quer dizer com independente. Nós dependemos de que? Ela é uma livraria feita pelos livreiros que trabalham nela. Hoje somos 9 sócios. São casos interessantes como o dos arquitetos Bel Lobo e Bob Nery, os mais espetaculares do Rio de Janeiro. Talvez sejam os mais importantes na arquitetura comercial do Brasil. Fazem Richards, Salinas, Farm, Granado, Boticário, vários restaurantes. Em 2 000 quando fizemos a loja da avenida Rio Branco encomendamos o projeto a eles, como sempre fizemos. Ficaram muito empolgados e entraram de sócios como forma de remuneração. Até hoje têm 4% da empresa,  que é uma só em todas as lojas. Outros cinco sócios trabalham diariamente na livraria. Vivemos disso e dependemos disso. Nossa vida é a livraria.

Hoje é possível a Travessa se posicionar politicamente como a Muro fazia?

A Travessa já está posicionada. Somos contra qualquer totalitarismo; de esquerda ou de direita. Às vezes, é preciso engolir seco; um livro que você diz “detesto, discordo totalmente”. Mas nosso dever como espaço  democrático é ter esse livro. É um desafio diário: “Caramba! Vamos ter de ter o livro do fulano”. Hoje mesmo essa polêmica está no ar porque vem aí um livro do Bolsonaro e é claro que teremos. Há casos piores, totalitarismos de esquerda e direita. Outro dia comprei aqui um DVD do grande cineasta russo Dziga Vertov; Requiém à Lénin. é uma coisa impressionante como o culto à personalidade é emburrecedor. É igual ao nazismo. Essa coisa de “Lula deu o pão, Dilma deu a casa”. As pessoas entram nessas ciladas. Mas a Travessa tem obrigação de ser totalmente democrática e ter espaço para tudo. Pelo tamanho, ela não pode tomar partido. A Muro tinha 25 metros quadrados. A época era de ditadura, censura absoluta. Existiu de 75 a 82. Pegamos Médici, Figueiredo. A  barra era pesada. Era uma livraria pequena que precisava de uma curadoria porque não podia ter tudo. Tínhamos 5% do que temos aqui. Ela teve esse papel. Ficava no subsolo de uma galeria e estava fadada ao fracasso. Mas de repente virou o local, porque combinava com aquele momento. O Wally Salomão, poeta, sempre que me via na rua gritava; “ As catacumbas de Ipanema”. Era esse clima de subterrâneo. Livrarias pequenas podem se dar ao luxo de dizer: “ Minha linha será essa”.

Nas questões de mercado, como a Lei do Preço Fixo, como ela  se posiciona?

Desde o começo somos absolutamente a favor da lei. Mas é difícil divulgá-la. Quando me perguntam sobre a lei, digo: “Quantos minutos você tem?”. A primeira reação da pessoa é ir contra;  quer ter o desconto de 80%  no site. São precisos uns minutos para mostrar que isso é a destruição do mercado e eleva o preço do livro. Nos países em que a lei foi implementada o preço baixa. Um exemplo que dou é o da grande empresa de e-commerce que pressiona o editor por um desconto maior para repassá-lo ao cliente. Mas ao saber que vai dar um desconto para essa empresa o editor aumenta o preço de capa, porque ele precisa receber X. Se vai dar desconto o preço de capa vai de 20  para 30 para receber os mesmos 10 que precisa. O consumidor não ganha desconto porque o preço do livro aumentou e em troca, a coisa mais importante, o mercado  plural, cultural, foi destruído. O mundo do livro existe para divulgar a diversidade. O consumidor não ganha nada e perde um monte de coisas. Na internet, um lugar onde todo mundo joga pedra, é impossível falar em acabar com o desconto.

Como vê o livreiro que começou na Muro e o empresário bem sucedido  de hoje?

O Godard disse uma coisa legal quando lhe perguntaram: “ Como vê o Jean Luc Godard hoje como personalidade mundial do cinema?” Disse : ” O Godard é um sujeito que vai andando na rua e eu um cachorrinho que vai atrás”. Sábado à noite fui com minha mulher à Travessa do Leblon comprar o novo livro do Sérgio Santana. Ficamos sentados no restaurante e havia um espelho em frente com minha imagem refletida e a livraria atrás. Não há nenhum cabotinismo nisso, mas fiquei pensando no começo, o quanto eu não sabia de nada. Quanta bobagem fazemos. Eu tinha 20 anos. E a Travessa hoje é muito bacana. Adoro lojas. Sempre gostei de comércio em geral. Minhas economias são para viajar para cidades grandes. Raramente para uma praia do Nordeste. Vou para ver vitrines e vou para ver livrarias. Sempre foi assim. Ia para São Paulo ver a Cultura, a Belas Artes, onde houvesse uma livraria eu ia. Depois que me juntei com a Bel Lobo e com o Bob, os arquitetos,  que também vivem disso, não falamos de outra coisa. Quando olho a Travessa digo ; “ Caramba! Que barato. Que lugar bem feito que eles, meus sócios fizeram”. Então me pergunto: “ Quem é esse personagem Rui, essa coisa um pouco distante que ajudou a fazer essa livraria espetacular”. Para não falar em Ribeirão Preto, um shopping imenso e você entra na livraria e  diz “ o que é isso?”. É impressionante a beleza da loja. A curadoria também  é muito boa. As meninas que comandam a compra, a Nica, a Sandra, a Mônica, são espetaculares. Mas não me distanciei tanto: toda a parte de importação, que é muito forte na  Travessa é feita por mim, junto com o Breno, que está na  Feira de Madrid, depois vai para Paris e para a Feira de Frankfurt.  Vivo mergulhado em catálogos, planilhas, recebo representantes. Só não participo muito da compra do nacional. Mas sempre dou palpite, identifico lacunas, algum livro que está bombando, arrumação, vitrine.

Qual foi  a importância dos sócios livreiros na sua formação?

Vim para o Rio para trabalhar na Muro, filial de uma livraria em Copacabana , a Carlitos. Fui convidado pelo primo da minha mulher, meio por acaso. A vontade de vir para o Rio era mais forte que a de ser livreiro. Mas comecei  a trabalhar como livreiro e a me entender ali.  Três meses depois anunciaram que iriam encerrar as atividades, não estava dando. Então eu e a Marta, minha mulher,  assumimos o abacaxi e continuamos. Mais adiante entrou o Aloisio Leite, um cliente super especial, apaixonado por livros, trabalhava na Cinemateca do MAM.  A conta dele era tão grande que ele disse: “ Ou você me aceita como sócio ou não pago minha conta e você quebra”. Antes dele teve um casal de mineiros, espetacular, a Regina Castelo Branco e o Carlos Alberto, eram astrônomos. Tem gente com  horror à sociedades: eu  acho que soma e fui abrindo. Depois abrimos filial na Tijuca, no Catete, agregando uma série de sócios. O Antonio Henrique Abranches, o Paulo Pestana, o Roberto Ainbinder, que hoje é arquiteto da prefeitura. Mas era O Incrível Exército de Brancaleone. Chegamos a ser editora, com uma linha fortemente de esquerda, textos gramscianos. Mas tudo mal estruturado, não sabíamos nada do negócio. Um dia falei: “Esse Muro vai desabar”.  Eles queriam continuar em uma linha de subterrâneo. Eu achava que tínhamos de ir para loja de rua, onde o povo está. Saí e me juntei ao  pessoal da Dazibao. Era o DNA pefeito; o Chico, economista, a Graça, mulher dele, jornalista, a Rita, bibliotecária e eu, livreiro,  com a experiência da Muro, que tinha tido sucesso. Era 82 e realmente a livraria fez muito sucesso, aprendi muito. Quando abrimos a Dazibao Centro, na Travessa do Ouvidor, a sociedade começou a ficar complicada. Nos separamos e eu fiquei com a loja do Centro que depois passou a se chamar Livraria da Travessa. Depois abrimos a  Travessa do CCBB, outra loja na Avenida Rio Branco, uma menor em Ipanema, antes dessa atual e foi crescendo até a do IML em São Paulo.

E qual é a sua  Livraria da Travessa favorita?

A próxima.  Mas não temos planos. Com a abertura da loja no IML em São Paulo, choveu propostas em várias cidades. Mas brinco com o pessoal de São Paulo que não há a menor condição de abrirmos nada agora, neste período de crise. Não temos dinheiro. A não ser que arrumem um lugar bacana e façam uma proposta legal. E pode aparecer uma proposta boa. Todas foram oportunidade que surgiram. A história da loja de Botafogo é linda, aliás vou dizer que aqui no Rio é a minha predileta porque foi a última. Na verdade queríamos montar um escritório, para botar o site e a parte de importação, e abrir uma lojinha junto. Achamos aquele espaço que era a Lavanderia Jandaia. O prédio estava um escombro, com os vestígios do tempo; um piso de azulejo hidráulico alemão lindo, mas só em um pedaço, o resto uma buraqueira. Então mesclamos o piso com assoalho de madeira. Invés de engessar as paredes resolvemos deixar como estava; clima Berlin. Você vê nas paredes descascadas a marca do tempo. Tem gente que diz; “ Mas vocês não vão acabar?”. Quando começamos vimos que tínhamos uma jóia ali e que não tinha nada a ver fazer uma livraria pequena e o resto escritório. Decidimos jogar o escritório para outro lugar e fazer a livraria até o fundo.

E qual a  Travessa preferida pelo público?

Botafogo é a menina dos olhos. Todo mundo está encantado. Realmente é fantástico aquele casarão naquele lugar novo, que é pulsante. Ipanema também é muito querida. O pessoal torce o nariz para lojas de shopping e com razão. Mas a Travessa Leblon é espetacular. Um oásis dentro do shopping. É a livraria onde gosto de ir para comprar. Aqui em Ipanema estou trabalhando, mas também de vez em quando não resisto a alguma coisa. Obviamente compro com desconto de patrão. Os funcionários todos têm desconto.

Há diferença entre as lojas quanto ao acervo?

Botafogo e Ipanema têm um acervo muito forte de poesia. Ipanema tem o Flavio Castro, um poeta apaixonado então ele cuida bem dessa área. Em Botafogo tem outro apaixonado, o Leonardo Marona, que dá muita força para essa área. Eles fazem lá um evento chamado “Poetas de dois tempos”; um poeta vivo falando de um poeta morto. É uma loucura, um espetáculo com muitos poetas jovens. A área jovem está muito presente em Botafogo, toda essa linha de livros de esquerda faz muito sucesso lá. Muita coisa sobre feminismo e gênero. Eles têm a mesa Mulheres, que faz muito sucesso. O centro tem mais área jurídica, negócios, coisas características da região. Ipanema é onde mais temos vanguarda, arte. Fazemos centenas de lançamentos por ano e todos jovens escritores e a vanguarda artística dizem que querem fazer em Ipanema. Alí tem esse clima de loja de rua. Há um preconceito, não no mal sentido contra shopping. Na Barra o forte é mais autoajuda, religião, que também são o forte na loja de Ribeirão Preto. Todas tem de tudo um pouco mais algumas puxam para uma área.

A que você atribui o sucesso que a literatura infantil tem feito?

É impressionante a quantidade de lançamentos. Há algum tempo começamos a ver isso inclusive no exterior. Os catálogos de livros infantis das editoras estrangeiras começaram a crescer a olhos vistos. Todo mundo investindo no livro infantil. Depois veio essa onda de Harry Potter. O grande motor dessa nova força do livro é a garotada. Dizia-se que as crianças só iriam ler no tablet e a venda de livros não para de crescer. Escrevi até um artigo sobre isso para o PublishNews  O fim do fim do livro. Por mais que as crianças adorem ficar em jogos, elas adoram o livro físico.

E quais são as suas preferências como leitor?

Antigamente gostava muito de ficção, literatura, hoje leio menos. Atualmente leio muito ensaios, história. E com essa coisa de livraria acaba que você vai lendo vários livros ao mesmo tempo. Você está lendo um livro, está gostando, mas de repente chega alguma coisa e você diz; “ Caramba!”. E dá uma parada naquele para poder ler outro.  Quando vejo, estou com dez livros na prateleira interminados. Agora mesmo estava lendo aquele Café Existencialista com história da vida cultural em Paris na época do existencialismo, Sartre, Beauvoir. Uma delícia. Disse: “Esse eu vou até o fim”. Mas aí chegou o livro do Raul Lores que estou apaixonado; São Paulo nas alturas. Estou interessado no tema São Paulo e o livro é ótimo porque é a história  não só da arquitetura como do empreendedorismo paulista, que proporcionou esse momento riquíssimo, final dos anos 40,  começo dos 50, quando surgiram todos aqueles prédios modernistas de São Paulo, no Centro, Higienópolis. O Copan, o Edifício Italia. Ele fala do lado arquitetônico mas também da ousadia dos encorporadores. Você tem a arte mas também tem de ter a economia. Tem de ter o empreendedor por trás para dar sustentação aquele negócio. É o que tem acontecido muito hoje com as artes plásticas; os artistas também são empresários. Essa turma de brasileiros que faz sucesso no mundo inteiro são empresários.

São Paulo tirou do Rio o  título de capital cultural?

Nesse país desmontado em que estamos; assaltado por uma gangue de políticos ideológicos, cegos, São Paulo parece algo minimamente preservado. O Brasil olha para São Paulo e diz que lá as coisas funcionam melhor que em vários estados quebrados. Rio e São Paulo sempre dividiram esse protagonismo mas o Rio está em um momento incrível , impressionante o que aconteceu aqui. Uma sequência de coisas inacreditáveis; Copa, Olimpíada, petróleo, que acabaram sendo revertidas para um lado negativo. Mas o Rio é o Rio, essa vitrine. Acho que vai se reequilibrar rapidamente. Torço para que isso aconteça. No momento São Paulo está realmente importante. É uma delícia de cidade, com todas as contradições do capitalismo brasileiro; uma mistura que está surgindo. Voltam-se as vistas para São Paulo.

E sua relação com Belo Horizonte, não vai abrir uma Travessa lá?

Estou sempre em  contato. Tenho amigos e família lá. Minha mãe mora lá, meu irmão.  Adoro Belo Horizonte. Para mim um dos lugares mais espetaculares do planeta é o Mercado Central de Belo Horizonte . Pelo meu interesse em comércio, onde tem mercado vou conferir e nunca vi nada igual em lugar nenhum do mundo. Em Lisboa agora tem o Porto da Ribeira, com restaurantes, que é muito legal, mas a riqueza autêntica do de Belo Horizonte não tem igual. Quanto a abrir uma livraria sempre me perguntam isso, mas nunca pensei . Talvez seja um pouco complicado.  Fazer uma livraria lá é muita responsabilidade para mim. Não é impossível . Mas tem todo um passado. Tem um provérbio árabe que o Benjamin gosta de citar que é “ Nunca voltes a um lugar onde fostes feliz”.

10/10/17