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Uma Livreira de Sorte


Margarete Cardoso

A conhecida especialista em livros raros do Rio de Janeiro, achou que trabalhar em livraria era ler o dia todo. Mas, depois de 51 anos no ramo ainda gosta do que faz e vê os clientes como amigos. Diz que a sorte ajudou muito. No entanto, talento para livreira não lhe falta.

 

 

Cotidiano

Trabalho de 2ª a 6ª feira e chego por volta de 8h30min; arrumo tudo e abro a loja. De manhã é melhor porque é um horário mais tranqüilo. Normalmente o cliente chega perto do meio dia, no horário do almoço e à tarde. Então eu tenho tempo de fazer minhas fichas e as pesquisas bibliográficas com calma. Geralmente fico até as 17h ou até mais se houver algum cliente. Temos um pequeno refeitório e dificilmente saio para almoçar; como aqui mesmo e continuo o meu trabalho. Hoje trabalhamos aqui Amélia e eu e mais dois funcionários; o número de pessoas que atendem é pequeno mas suficiente. A parte de cima da livraria bem mais tranqüila, é muito especializada e onde colocamos os livros que vão para leilão e os livros raros que são mais caros; na loja o risco é muito grande. O movimento maior é na loja. O prédio inteiro tem na realidade 7 andares: loja, sobreloja e do primeiro ao quinto. Obviamente o movimento maior é na loja, sobreloja e primeiro andar. Os restantes, todos ocupados por livros servem mais como depósito.

Sou descendente de alemães, carioca de nascimento e moro em Niterói. Já foi uma cidade linda, não é mais a mesma coisa, mas ainda é gostosa de se morar. Os cariocas dizem que o melhor de Niterói é a vista para o Rio. Venho para o trabalho de barca; a ponte normalmente está parada, intransitável e eu levaria o dobro do tempo para chegar; da Praça XV até a livraria venho a pé. Morei na Praia de Icaraí durante 30 anos e tomei banho de mar à vontade. Hoje a praia está poluída e o bairro virou uma Copacabana em miniatura. Não tem mais graça. Atualmente moro no Jardim Icaraí, que é uma parte de Santa Rosa.

O Começo

Tive muita sorte. Para ser franca, entrei na livraria completamente crua. Gostava muito de livros, mas nunca tinha trabalhado. Então o Sr. Eichner, e o Sr. Walter também, praticamente me pegaram pela mão e me ensinaram todo o beabá. Com o tempo, depois de 50 anos, você já pode dizer que esta independente. Quando comecei tinha 19 anos e foi o meu primeiro emprego. Naquela época eu estava noiva e meu pai disse: “Se você quer casar tem que fazer alguma coisa, precisa saber como é ganhar dinheiro”. Meu pai era muito alemão nessas coisas. Então ele me trouxe à livraria, porque conhecia bem os sócios que tinham acabado de colocar um anuncio em um jornalzinho alemão do Rio procurando alguém que soubesse línguas. O que foi a minha grande sorte: eu falava português, alemão, inglês, Frances (que leio, entendo muito bem mas na hora de falar falta a prática precisaria conversar mais). Quando comecei a trabalhar vim com vontade e quando soube que era com livros, pensava que era só sentar e ler o dia inteiro. Mas os donos da livraria foram muito bons; principalmente o Sr. Eichner, me ensinou tudo. No início eu não lidava com o público; primeiro tive que aprender tudo. Porque na Europa se você quiser trabalhar em uma livraria não vai atender os clientes de imediato; então eles me ensinaram a catalogar e tudo o que fazia parte das pesquisas. Aos poucos fui começando a lidar com os clientes e conhecendo as pessoas. Sempre fui muito despachada e gostava de lidar com pessoas de todas as classes, desde o pescador de arrastão, até embaixadores, advogados, escritores, políticos, etc.

Línguas

Quando você lida com livros raros e antigos mesmo sem querer tem sempre que ampliar seus conhecimentos . Tem o italiano, o espanhol... O espanhol a gente praticamente tira de letra. Latim por exemplo foi a minha sorte. Fiz o clássico e, entre ginásio e clássico tive oito anos de latim. O clássico, eu estudei no Liceu Nilo Peçanha, que era um excelente colégio naquela época. Um colégio público, mas muito bom. Professores excepcionais, de modo que isso me facilitou muito. Claro que eu não vou chegar e dizer que falo latim ou leio latim. Mas a base está ali. Mas não me fale em árabe ou chinês porque aí a coisa muda de figura. As coisas estão se modificando, mas acho que quem pesquisa, quem estuda, realmente sempre vai precisar porque os livros básicos estão em latim.. O francês era uma língua cultural importantíssima, depois da guerra foi que o inglês começou a tomar conta. Então eu acho que as línguas não vão morrer, mas que há uma modificação tremenda, isso sem dúvida. O mandarim hoje é muito importante, mas não sei se vai tomar conta também da parte cultural, da parte de literatura, aí eu acredito que não. Vai ser uma língua muito mais voltada para a técnica, para a parte científica. A própria filosofia mudou tanto. Tem épocas que os filósofos alemães eram melhores... não sei, não sou tão especialista assim, mas enfim, eram mais conhecidos eram mais comentados, depois teve uma época que os filósofos franceses tomaram a dianteira. Hoje em dia os alemães parecem que continuam, assim como os gregos... Platão. Eu acho que são sempre ciclos. Aliás hoje no Globo tem uma crônica da Cora Ronaí que ela fala sobre essa coisa de tradução que vale a pena ler. Muita divertida, muito interessante. A tradução simultânea. O que pode sair dalí. Muito engraçado. Mas eu não tenho uma predileção por outra língua, a facilidade com que falo alemão é porque desde pequenina só falávamos alemão... com os pais ao menos. E o português, obviamente, nascida aqui, sempre fui a colégios brasileiros e nunca tive problema algum. Fora isso gosto muito do inglês e do francês. Gosto das duas línguas, eu não tenho muita dificuldade, tenho facilidade. O Alvarus é que sempre dizia,”o livreiro”, falando de livro raro, “pode ser comparado ao porteiro de um grande hotel” porque sabia de tudo um pouco. Você nunca consegue se aprofundar num determinado assunto pois tudo o que passa pela sua mão são coisas completamente diferentes. A sorte é que eu realmente gosto de muitos assuntos, eu gosto de história natural, por exemplo biologia, eu gosto de filosofia, gosto de literatura, adoooro romances policiais quando são bons. Então você tem que jogar com isso.

Livros

Quando pequena, quando menina, eu gostava muito do Willelm Busch, aquele do “Juca e Chico”. Só que os álbuns dele são enormes. São dois volumes muito grossos. Eram estórias muito engraçadas, o que hoje seriam historia em quadrinhos. Um pouco diferente mas mais ou menos isso.Eu lia em alemão porque nem tudo dele foi traduzido para o português. O “ Juca e Chico” é o que é mais conhecido mesmo. E depois, aos 12, 13 anos eu adorava Tarzan. Gostava também do Karl May. Ele era um professor alemão que nunca saiu da Alemanha. Sempre gostei muito do Thomas Mann. Entre os brasileiros...bom, português eu adoro o Eça de Queiroz, gosto muito. Brasileiros... não vou citar Machado não, viu? Gosto dos nordestinos, de temas nordestinos, José Lins do Rego. Graciliano.Gosto muito deles. Isso na fase adulta. Na adolescência eu esqueci Monteiro Lobato. Esse aí eu li todos. São 15 volumes, 12 volumes, nem sei mais. Os “12 trabalhos de Hércules”. Tudo que fosse de aventura eu sempre gostei como gosto até hoje. O Tarzan que eu lia era em livro porque naquela época não existia quadrinhos. Era uma série enorme que tinha na biblioteca pública. Eu estudava no Liceu e do outro lado da praça havia a Biblioteca Pública. Obviamente eu ia lá sempre pegar livros, desde novinha já gostei muito. Lá era muito fácil, a Biblioteca era muito bem organizada, não me pergunte como é hoje. Fica na Praça da República, onde tem o Fórum e o Liceu.

Kosmos

A Livraria Kosmos (atual Rio Antigo) foi fundada em 1935. Eu estou aqui desde 1960. A Kosmos não acabou propriamente. É que o atual proprietário, morava em São Paulo e tinha negócios na Europa. Ele achou que não iria conseguir gerenciar tudo. Preferiu ficar só com a parte de livros novos, e perguntou se eu não queria ficar com a parte de livros antigos. Eu disse: “tudo bem, fico”. Mas vi que sozinha não iria conseguiria manejar tudo. Então, primeiro tive alguns sócios que depois, por um motivo ou por outro saíram .Agora estou com a Amélia. Estamos carregando juntas. Depois de sair daqui a Kosmos continuou no Rio em uma sala pequena na rua Uruguaiana, só com livros novos, técnicos e científicos. Agora está em São Paulo. Antigamente, no ínício, a Kosmos era a livraria especializada em livros técnicos e científicos. Inclusive tinha muito livro em alemão também, se importava muito livro. Mas as coisas começaram a mudar.Começaram a abrir outras livrarias e foi ficando cada vez mais difícil. Infelizmente. Tenho muita pena, porque afinal de contas eu fui da Kosmos também. Os donos eram austríacos. Um era austríaco e o outro da Hungria, mas quando a Hungria ainda fazia parte do império Austro Húngaro. Então a educação e instrução dele era toda da parte alemã mesmo.A Kosmos não tinha nenhuma concorrente. Durante longos anos ela foi muito forte porque tinha tanto a parte de técnicos, científicos, quanto uma parte muito grande de arte, de literatura e de livros importados. Me recordo que quando comecei, em 1960, o governo dava um dólar especial para a importação de livros. O dólar passava a ser mais barato que o dólar oficial. Então, realmente, a facilidade era grande. As editoras nos davam um bom desconto e além do mais, se a gente pedisse 12 livros de um determinado título, a gente ganhava um de graça. Dúzia de treze, como a gente chamava. E com o tempo todas essas facilidades foram acabando. Também o que dificultou muito foi o porte, o envio que encareceu muito. Muita gente reclamava na época que dólar livro era mais caro que o dólar oficial porque nós tínhamos de embutir todas as despesas de porte. Eles cobravam a postagem, o empacotamento, o seguro. Aqui no Brasil a gente tinha de pagar a pessoa que retirava os livros. E também tínhamos de pagar uma taxa na hora de fazer o pagamento no banco. Então, tudo isso subia muito o preço.Em geral os livros vinham da Alemanha, França e Estados Unidos. As grandes editoras científicas e técnicas eram americanas. Depois da Guerra as americanas entraram firme e forte. Porque inclusive durante a Guerra já era mais difícil trazer livros da Europa. E foi aí que surgiu essa parte do livro raro e do livro usado porque a gente comprava aqui mesmo muitas bibliotecas de livros estrangeiros. Era mais difícil publicar durante a Guerra. Aquela editora Americ Editeur era uma editora francesa que publicava aqui no Brasil, porque durante a Guerra não podia, principalmente quando os alemães estavam lá. No início foi muito fácil; já tive livros que eu sei que nunca mais vão passar pelas minhas mãos. Eu me lembro que havia dois clientes nossos, um eu vou até citar o nome, porque não tem problema, o Álvaro Cotrim, que foi correspondente na França, em Paris, logo depois da guerra, na época do tratado de paz. Ele trouxe raridades de lá a preço de banana. Porque lá eles não tinham nem o que comer, então vendiam livros raríssimos praticamente por qualquer preço. E ele formou basicamente a biblioteca dele lá. Fora da França foi o maior colecionador do Daumier, que ele adorava o caricaturista também. E ele trazia tudo para cá e tinha uma coleção de se tirar o chapéu.

A Kosmos praticamente começou com livro novo e livro usado, o que não era muito usual na época. Um dos fundadores da Kosmos, que era o pai dos que depois trabalharam aqui, era um colecionador lá na Austria. Tinha uma coleção fantástica. Conseguiu trazer para cá e aí resolveu aos pouquinhos ir se desfazendo. Isso foi realmente o cerne da coisa. Também começaram a comprar aqui.Gente que queria vender livro usado. Muitos alemães aqui que durante a guerra também passaram necessidade. Na Europa o mercado de livro usado é uma tradição cultural muito antiga. Você tem por exemplo, gravuras do século XVII, do século XVIII, vendidas não numa livraria como é nos moldes de hoje, mas naqueles bouquinistezinhos. Você já tem gravura mostrando isso. Aqui no Brasil nem se sonhava com esse tipo de coisa.

Público

Tenho facilidade com as pessoas. Tenho facilidade de prever como a pessoa reage enquanto cliente. Tem pessoas que chegam num lugar e não querem ser incomodadas, querem ver sozinhas. E tem outras pessoas que querem que você fique do lado. Quando vejo que a pessoa não quer ser incomodada:” Fique à vontade”. Nesses anos todos se tive problema com duas ou três pessoas foi muito. Mas não acho que o cliente tem sempre razão. Há pessoas que entram aqui e acham que a gente está aí só para vender livros. E falam que sabem disso e aquilo outro. Então a gente, com jeitinho faz com que a pessoa perceba que sabemos isso e muito mais. Por isso é que digo que não é sempre que a pessoa tem razão. Mas com jeito a coisa funciona.

Óbvio que os clientes fiéis, que vem aqui todos os anos, têm desconto. Mas uma das poucas discussões que tive foi com um senhor, que era advogado, de mais idade, muito posudo, pintava o cabelo. E ele dizia que tinha não sei quantas camisas italianas, e os sapatos franceses, e vivia pedindo desconto. O máximo que eu dava era 10% e ele dizia: “ Eu vou na São José e ganho 30 ou 40% de desconto”. Eu falei: “ Sinto, mas só posso lhe dar 10%”. E ele vivia reclamando. Então virei para ele um dia e disse :”Olhe! Vamos combinar uma coisa? Eu posso até passar a lhe dar 30, 40% de desconto. Mas vou remarcar todos os meus livros, vou lhe dar 30% de desconto, vou ganhar o que acho que o livro vale e o senhor com certeza vai sair muito satisfeito”. Ele olhou para mim e disse:” E, a senhora é mesmo uma judia”. Eu disse :”Muito me admira o senhor como advogado que é, não conheça a lei Afonso Arinos, que aqui no Brasil não pode haver perseguição .Além do mais não sou judia, sou ariana, o senhor pode ter certeza disso”. Aí ele nunca mais voltou aqui. Ora, vejam só. Nós aqui temos por norma fazer listas, catálogos, temos nossos leilões e temos que colocar preço nos livros. Então não estou enganando ninguém. Não olho para sua cara e digo que tem pinta de que pode pagar mais. Eu não faço isso. O preço está marcado direitinho.
Meu trabalho envolve muita pesquisa. Não lido com editores. Faço pesquisa e lido com o público. Mas gosto dos dois. Tanto da pesquisa, que gosto muito e do público também porque no final das contas todo mundo acaba se tornando amigo. É um relacionamento muito diferente com o público do livro raro e com o público do livro novo, que entra na loja, pega um livro e pronto acabou. Esse não, ele vem com freqüência, ele volta, recebe os catálogos, vem aos leilões. Então é um relacionamento bem diferente.

A crítica

Aqui no Brasil, com exceção talvez do Wilson Martins, acho que os críticos nunca tiveram muita influência. Mas eu também não acompanho isso bem de perto. Meu mundo é um mundo bem antigo, bem velhinho. Já houve grandes críticos literários, mas pessoalmente acho que nunca tiveram tanta importância para o público de um modo geral. Você vê os autores que mais fazem sucesso no Brasil. Vamos ser francos. Não é preciso entrar em detalhe. Os críticos podem cair de pau em cima mas o Zé Povão gosta. O Benjamin Costallat foi muito criticado em sua época mas hoje está sendo resgatado. Mas isso porque ele descreveu muito bem a sociologia da época. Para nós hoje é uma delícia você ler isso e ver como era e não era; a relação homem e mulher, prostituição, etc. Na realidade eu acho que ele escreve bem, é gostoso de se ler, mas não é um autor maravilhoso. Mas do ponto de vista de escrever sobre o cotidiano ele era fantástico e vários outros também. Eu não tenho uma atitude de crítica e nem quero. Posso dizer a você “Gosto” ou “ Não gosto”, ou chamar atenção para alguma coisa. Como um livro que eu li outro dia, meu Deus, que coisa horrível. Uma coisa horrorosa. Eu não entendi a metade e é até um livro que fez um certo sucesso. O fim da picada. Prefiro não citar porque o autor está vivo e ele me dedicou um exemplar com muito carinho. Aliás eu sempre brinco que quanto mais prolixo o título de uma obra, pior ela é. Antigamente os títulos eram muito mais concisos. Era História do Brasil, era isso, era aquilo. Hoje como eles adoram botar título e subtítulo, tudo muito romanceado. Não que seja uma porcaria, mas não tem novidade nenhuma. Ontem mesmo nós recebemos um livro, “ Nossa Senhora dos Anjos – Mistério na Bahia de Guanabara”. Eu disse, ”Meu Deus do céu, o que é isso?”. No fundo, é o seguinte: o naufrágio do navio que se chamava Nossa Senhora dos Anjos e as tentativas de resgatar. Mas precisava botar “Mistério na Baia de Guanabara?” . Eu implico com essas coisas. Porque não bota “O naufrágio”. Muita gente vai comprar com certeza por causa do subtítulo.O livro é bonito, bem feito, bem ilustrado. Mas eu pessoalmente não gosto. Sou muito pão pão, queijo, queijo. Nada de frasear muito e inventar.

O livro objeto

De uma certa forma acho que houve uma decadência no objeto livro. Mas a gente tem de ver também o lado prático, o lado econômico da coisa. Quando eu comecei a trabalhar havia vários ótimos encadernadores aqui no Rio de Janeiro. Excelentes. Havia muitos bons douradores e era relativamente barato. Hoje em dia, entre os meus clientes, só se o livro for muito raro, muito caro, ele pode mandar fazer uma encadernação especial para esse livro. Mas ninguém tem mais condições de mandar encadernar tudo. Por exemplo esses livros, são relativamente baratos, uma coleção sobre Eça de Queiroz. Se for mandar encadernar nessa encadernação comum no barato vai custar R$40,00 ou R$50,00 por volume. Quem é que hoje em dia tem condições. Porque você não tem só isso. Você tem muito mais. E o papel é realmente um produto frágil. Mas você tem aqui livros do ano de 1400 e pouco de 1500 e pouco que estão em excelente estado de conservação. O papel é muito bom, é papel de trapo. E eu me pergunto se esses livros recentes, vão conseguir sobreviver 300, 400 anos? Não acredito.Você vê essas novas tecnologias. Em poucos anos aquilo vai mudando. E você tem toneladas que tem de passar para um método mais moderno, ou você joga fora. Enquanto que o livro está aí, bonitinho. Com exceção obviamente do ataque de insetos, mas se você cuidar bem dele isso não vai acontecer.Cuidar bem é manusear com uma certa freqüência, justamente para evitar, caso tenha entrado uma revoada de cupim, como temos na primavera com uma certa freqüência. Então fecha a janela, e se entrar você vai mexer no livro para evitar. Outros tipos de inseto aqui é difícil. Não tem mais esse negócio de baratas, como tinha antigamente. Uma vez nos compramos uma biblioteca na praia de Botafogo, que estava fechada há 10 ou 12 anos. Era até um dos filhos do Getulio,um crítico literário. Curiosamente por os livros terem ficado fechados esse tempo todo tinha uma camada de poeira muito grande em compensação não tinha um cupim, um inseto, nada, nada. Para limpar foi um custo, mas não houve ataque nenhum. E isso na beira do mar e o inseto de um modo geral gosta de umidade. É por isso que muita gente coloca o ar condicionado. Porque ele resseca o ambiente. Quanto ao livro digital ninguém nunca vai me ver com um. A grande maioria dos meus clientes, e curiosamente, muitos jovens, prefere o manuseio do livro. É quase que um prazer.Por exemplo quando você quer voltar algumas páginas há muito mais facilidade do que na tela. Não vejo graça nenhuma e a mim me cansa muito a vista. E muita gente não gosta. Eles gostam de vir à livraria. Tira, olha, leva, não leva. Aquele manuseio é quase como um ritual que você faz para depois usufruir daquilo. Se o livro fosse acabar essas mega livrarias não estariam abrindo novas filiais. Você vê agora mesmo vem aquela de São Paulo para cá, a Cultura.Eu não acredito que eles iriam empatar tanto dinheiro assim se houvesse esse risco. Claro que eu sei que essas mega livrarias têm café, têm pão de queijo e tudo ajuda. Mas você também não vai entrar em uma livraria só para tomar um café e comer um pão de queijo. De jeito nenhum.Pode ser que você saia sem livro nenhum, mas você vai para ler. Continuo acreditando piamente que o livro não vai acabar. E nas novas gerações muitos gostam de livros. O grande impecilho é o preço. Antigamente o preço era relativamente menor. A aquisição era mais fácil. Ao contrário do que dizem acho que o jovem ainda lê. Tem muita gente jovem que entra aqui. Não sei se é por causa da proximidade do IFCS, o Instituto de Filosofia, porque de lá vem muita gente. Mas também tem outras pessoas. Jovens que passam olham. Não é nem o fato de comprar ou não . É você entrar na livraria, olhar, pegar um livro. Isso eu já acho importantíssimo. Agora tem muitos que vão torcer o nariz e dizer :”Essa velharia”. Mas isso sempre existiu. Agora eu não estou a par de como é nas outras livrarias. Porque o livro novo é caro, o livro usado fica bem mais em conta. Acho que é válida uma lei de preço fixo para o livro novo, como existe na Europa. As grandes livrarias fazem muita concorrência com as pequenas livrarias que continuam sendo importantíssimas. A grande livraria compra com um desconto bem maior por causa da quantidade. Então tem como abaixar o preço. A livraria pequena não tem nem como dar desconto. Se você por no papel todos os seus gastos, você teria de ter no mínimo 40% de desconto para ter algum lucro. Isso eu sei porque fiz um curso onde a gente botou tudo no papel. Essa pessoa veio de São Paulo dar o curso chamado pelo dono da Kosmos.

Ladrões

O ladrão de livros é um problema, mas como a nossa porta normalmente fica fechada e tem aquele sininho, quando entra alguém a gente sempre olha. Os ladrões de livros se acham muito inteligentes mas você já nota por toda a maneira dele se comportar. Mesmo você estando longe ele vira e olha pra você. Ele vai para um cantinho. Você já nota que aí tem uma coisa diferente. A gente já fica de olho em cima ou então faço sinal para os meninos. Acontece. Porque tem uns que são muito vivos. Mas de um modo geral a gente consegue controlar. Na área de livros raros o prejuízo é bem maior. Por isso as coisas boas vêm aqui para cima. Na loja, a primeira banca, na entrada, é a de saldos, onde cada livro custa R$ 10,00, aí se quiser... leva um. Há muitos anos atrás, quando aqui ainda era Kosmos nós tínhamos um cliente que era fissurado por Napoleão. Tudo que era Napoleão ele queria, comprava, tinha condições de comprar. Uma vez um dos meus chefes trouxe da Europa uma coleção grande, de um autor inglês que agora não me recordo o nome, em que um dos volumes era uma biografia de Napoleão. E a coleção toda estava muito bonita, bem encadernada, uma beleza.. Ele ficou louco. Queria comprar o volume separado, mas não abrimos mão de jeito nenhum. Os livros ficavam em uma mesa. Aí um belo dia eu digo” Ué? Cadê o livro sobre Napoleão? Sumiu”. Só podia ser...seria uma coincidência muito grande. E ele andava de um lado, andava pro outro, colocava uns livros em cima de uma pilha.O livro sumiu no mesmo dia em que ele esteve aqui. Tinha uma senhora que trabalhava com a gente. Tempos depois ele pediu que ela fosse fichar a biblioteca dele. Ela foi. Dois ou três dias depois ela chega e diz: “Margarete! Você não sabe...aquele livro está lá na biblioteca dele. O que é que eu faço”. Eu falei: “ Se eu fosse você, levaria uma bolsa bem grande, pegaria o livro, enfiaria na bolsa e traria o livro de volta”. Ela disse “ Ah, mas eu não posso fazer isso...”. E não fez.Eu teria feito.Ele deve ter se esquecido. Assim como tem outro. Esse está vivo até hoje. É um colecionador. Famoso por...se puder ele carrega o livro. Ele levou um livro e esse eu tinha certeza de que tinha sido ele pois tenho uma facilidade de ver quando está faltando um livro, justamente em função de fazer a ficha de cada um. Era um livrinho pequeno, vermelho, cheio de douração. Não esqueço nunca. O livro estava no segundo andar e o último a ter estado lá foi ele, o dito cujo. Passaran-se os anos. Ele ficou numa situação meio crítica e chegou: “Walter, estou precisando vender uns livros. Você não quer comprar?”. Ele trouxe e o livro estava lá. Eu falei: “Sr Walter, esse é o nosso livro. Tenho certeza absoluta”. Aí o Walter o encostou na parede. Ele obviamente não confessou, disse:” Não esse livro eu comprei do Pires”. Coitado do Pires, naquele tempo trabalhava na Biblioteca Nacional. “ Mas se o livro foi tirado de vocês, toma o livro de volta”.Ele viu que a gente sabia e inventou essa mentira e o livro voltou. Esses foram os dois únicos casos de livros raros que eu me lembro. Ah! Tem um outro, um terceiro, também colecionador, uma amor de pessoa. Separou um monte de livros, pediu para entregar na casa dele. E tinha um folhetinho, fininho, muito caro que era muito raro. Tinha uns livros grandes, uns livros normais. E o menino embrulhou e foi entregar no escritório dele que era na Rio Branco. Depois, arrumando as coisas eu disse “Cadê o folheto?”.
E ele tinha olhado. Eu disse: “O que eu vou fazer?”. Liguei para ele:”Fulano, o Sr. Estava olhando aqueles livros. Tinha um folhetinho...será que por engano o Dino não embrulhou junto com os livros”. – “Ah, Margarete, não sei. Faz o seguinte: Eu nem abri ainda o pacote. Pede ao Dino para trazer de volta e dá uma espiadinha”. Por melhor que a fita durex estivesse prendendo o papel eu vi que o embrulho tinha sido mexido sim. Aí tive a idéia de folhear justamente o livro maior. O folheto estava enfiado lá dentro. Eu não falei nada. Muito educadamente jamais toquei no assunto com ele, mas sei muito bem que foi ele que colocou. E cansam de entrar aqui perguntando se a gente quer comprar livro. Eu vejo logo livro novo em folha. Tem uns que dizem;:”Eu saí da firma, da editora. Eles não tinham como me pagar e me deram uma quantidade de livros.” Eu não compro de jeito nenhum. Mas eu sou uma. Tem outros, muitos outros que compram. Ou por que são inocentes, o que eu não acredito. Ou porque é vantagem para eles. Saí baratinho um livro que custa muito mais.

Tecnologia

Faço a ficha dos livros à mão mesmo. Antigamente fazia à maquina, mas acho mais fácil à mão. Depois passo para a Amélia, ou para alguém, para fazermos o levantamento no computador. Porque várias vezes já aconteceu de precisar procurar no computador e por algum motivo não dá. E a minha fichinha está ali bonitinha. E muitas vezes acho com muito mais facilidade, com mais rapidez no fichário, que é tudo por ordem alfabética. Outra coisa curiosa que eu acho sobre o computador é isso: dificilmente alguém sabe que o nome completo de Machado de Assis é Joaquim Maria Machado de Assis. Então você vai e clica Assis e tem 589 mil Assis.Quem é esse Assis que você está procurando. Então é uma série de pequenos detalhes. As vezes por causa de um acento você não encontra uma determinada coisa. De um modo geral prefiro ter distância do computador.Sabe o que acontece? Eu estou fazendo a ficha de um livro muito raro. De que eu preciso? Preciso de bibliografias, para ver se cita ou se não cita. Ás vezes, para um único livro eu encho essa mesa todinha de bibliografias e coisas de pesquisa. No computador eu não teria esse espaço todo, seria muito mais complicado.Eu pessoalmente prefiro fazer a ficha no papel, cartão no caso, e depois alguém coloca no computador, no site, na Estante Virtual, faz o que quiser. Mas eu tenho a minha fichinha ali na mão prontinha para o que der e vier. Quanto a parceria da Rio Antigo com sites internacionais de livros usados não temos. Temos muitos contatos de alfarrábios da Europa. Algumas parcerias. Com o leilão, a venda foi tão boa e a repercussão foi tão grande que para nós não interessa colocar livros raros na Estante Virtual. Esses estão no nosso site, através dos catálogos dos leilões.

Outra tradição nossa são os catálogos.Fazemos catálogos de livros desde o início da Livraria Kosmos . Conforme o material ia entrando a gente ia fichando. Naquela época não existia computador. As fichas eram batidas à maquina e íamos juntando um determinado número. Então fazíamos o catálogo, mandávamos para os clientes. Aí com um preço fixo, preço “X”. E sempre vendíamos muito bem através de catálogos. Uma grande parte de nossos clientes era do Nordeste, Pernambuco, Bahia, Ceará tinha muita gente, São Paulo, Minas. E eles não podiam vir aqui toda hora para saber o que tinha. Algumas outras livrarias também faziam catálogos. O Trajano fazia. Mas não eram muitos. A Ana Maria do Sebo Fino, em Petrópolis, também fez alguma coisa. Sem dúvida era muito mais custoso. Naquela época a gente mandava para a gráfica, ela imprimia, mandava de volta para a revisão. Era muito complicado mas valia a pena. Mas pretendemos em breve resgatar os catálogos para bibliófilos e disponibilizá-los no site.

Leilões

O leilão hoje em dia é mais novidade. E é interessante. Começamos a uns dez anos. Antigamente existia o leilão de antiguidades e um ou outro livro entrava no meio. Mas leilão de livros, documentos, papel de um modo geral é relativamente novo. Os leilões têm um grande número de participantes e são bastante concorridos. Não só com o pessoal do salão como pelo pessoal que faz lance prévio; recebe o catálogo e diz “ quero esse livro” e oferece tanto, ou então vão acompanhando por telefone. O leilão acontece na loja. Saem os balcões, colocam-se só cadeiras. Tem o espaço do leiloeiro e da sua equipe. Aquilo ali é um frenesi.Uma coisa de louco. Muito interessante. O livro mais caro já vendido em nossos leilões, eu estou tentando me lembrar, foi talvez um álbum de fotografias, ainda da época do império, que na ocasião, já se vão vários anos, alcançou R$45.000,00 ou R$50.000,00. Mas os livros mais raros e mais caros a gente geralmente não vende em leilão. Nós geralmente vendemos por fora porque já sabemos quem é que está interessado. E aí já tivemos valores mais altos. Vendemos uma edição original do Chamberlaim, com as vistas do Rio de Janeiro, que naquela época...vou dar o preço em dólares, o dólar valia mais, foram 70 mil dólares .Mas vamos multiplicar por dois. Seria mais ou menos R$140.000,00. E foi para um cliente brasileiro. Cliente estrangeiro hoje praticamente não existe mais. Nos Estados Unidos já há vários anos as universidades estão com o budget lá em baixo. Não é mais como antigamente quando aparecia um livro raríssimo e eles compravam de qualquer jeito. A gente mandava os catálogos para lá. Ou então, como a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, uma vez por ano o diretor do Departamento Latino Americano vinha para cá escolhia uns livros, ou a gente oferecia, e eles faziam um pedido. O material leiloado na maior parte das vezes nos é oferecido em função do nome que já temos, o que facilita muito. Ou então através de clientes que nos indicam. Ou por telefone. Alguém diz que tem uma biblioteca à venda. Muitas vezes é um fracasso total, outras é muito bom, vale muito a pena. Mas eu diria que a maior parte das boas bibliotecas vem sempre através do nome que a gente tem. Nós vendemos a biblioteca do Márcio Moreira Alves, já fizemos a terceira parte e ainda vai ter mais uma. Ele tinha sido cliente nosso e a família nos procurou. A viúva dele sempre me fala que eu fui a mulher mais cara na vida dele.

Emoções

Quando o livro é muito bom, a emoção da compra é sempre maior, porque na venda dá uma tristeza. A gente sabe que não vai ter mais. Que acabou. Esse é que é o problema. Eu já tive obras aqui que eu sei que nunca mais vão passar pelas nossas mãos. Antigamente no Brasil havia muito material. Impressionante o que havia de coisa boa aqui. Nacionais e principalmente estrangeiras. Livros de horas, manuscritos do século XIV. Isso eu sei, digo e posso provar porque tem os catálogos. E foi tudo embora. Tudo voltou para a Europa mesmo e se aparecer um hoje eu vou dar dez pulos de alegria. Agora em termos de documentos, papéis, houve coisas muito interessantes mas que não posso dizer que foi uma emoção. O livro sempre me emocionou mais, tive documentos interessantes mas nada que eu dissesse:”Ah! Que coisa fantástica”. Porque em documentos e cartas geralmente o que vale mesmo é a assinatura. Porque o teor normalmente não é nada tão especial. Esse é que é o grande problema. É um pedindo indicação para o amigo dele...Agora me lembro de um único documento: foi a carta original do Villegagnon em que ele fala aqui do Brasil, que se instalaram na ilha, essas coisas. Esse realmente foi um documento super importante que a Marinha comprou. Mas de resto não houve nada que me tocou. Você pode ter uma carta do Machado de Assis, que é dirigida para o padeiro ou açougueiro dele, mas está ali assinado “ Machado de Assis” e então custa uma fábula.
Geralmente leiloamos papéis. Mas há casos como o acervo do Nilton Santos em que vão outras coisas junto. É o que a gente chama de memorabilia. Lá na loja tem algo que eu nunca vi, trazido por um amigo nosso que quer vender em leilão. É um álbum impresso em Cuba, de 1936, de uma tabaquelaria, um fabricante de cigarros. É um álbum geográfico universal, todos os países. Cada país tem uma página, com 13 ou 14 figurinhas, postais fotográficos da época. No prólogo eles escrevem que no maço de cigarros deles sempre haveria uma figurinha para se preencher o álbum. São 780 figurinhas e eu digo:”Meu Deus! O camarada deve ter morrido de câncer de pulmão para conseguir 780 figurinhas”. Mas é muito interessante. Então essas coisas às vezes me dão muito prazer não é nem pelo dinheiro porque não é tão caro assim. Mas você imagina um álbum de figurinhas completo, de 1936, com todos países, é muito bacana. É algo que sobreviveu: 36 para hoje não é tanto tempo assim, mas é uma coisa que sobreviveu perfeita. Será que essas novas tecnologias vão sobreviver tanto tempo?

Também adoro folheto. Acho que engana muita gente. Às vezes o pessoal vai no livro grande, mas o folheto... Geralmente eles passam por cima. Um trocinho fininho, com poucas páginas. Mas nesses folhetos há coisas muito interessantes e muito raras. Rara pelo seguinte: como é um folheto o pessoal joga fora. Como o jornal, é lido na hora. Tem muita coisa do tipo biografia; casos sobre prostituição na época, como era e não era. Mesmo história do Rio de Janeiro. História de um determinado bairro ou de uma determinada rua. Ou casos de polícia, ou briga de famílias. Tudo isso é muito interessante. É uma prática mais antiga porque era mais fácil você mandar imprimir. Hoje é mais difícil e hoje é tudo politicamente incorreto.Naquela época um chegava e metia o malho no outro e podia e não havia problema nenhum. O máximo que acontecia era ele ir lá e dar um tiro no autor. Mas hoje é briga na justiça. É muito curioso isso. Os folhetos eram vendidos em livrarias ou até distribuídos. Se eram edições particulares, o pessoal mandava imprimir e distribuía entre os amigos e correligionários ou para o governo. Alguns eram vendidos em livrarias como até hoje existam os folhetos de cordel. Esses são mais difíceis porque como são muito pequenos o pessoal acha que não vale a pena vender. Mas estão em barraquinhas e de uma certa forma não deixa de ser o folheto popular em que ele fala de um político. Uma estória mítica, às vezes. Não precisa ser necessariamente o acontecido. E ás vezes mete o malho.

Mémoria

O segredo da boa memória é trabalhar.Trabalhar com livros principalmente. Leio muito. Não leio mais como antigamente, vou ser muito franca. Quando jovem a gente fica acordada até três horas da madrugada para levantar às seis e está tudo bem. Agora não.Apesar de eu dormir relativamente pouco. Mas já me canso. Mas o segredo é trabalhar com aquilo que se gosta. Porque trabalhar por trabalhar para chegar no fim do mês e você estar com o seu dinheirinho, a mim não me tenta em nada.Nada, nada. Agora mexer nos livros. Descobrir uma coisa que você não sabia. Estar sempre interessada no que você faz. Eu trabalho o dia inteiro com livros. Chego em casa sempre leio um livro ou outro, não mais com tanta freqüência. A noite gosto de assistir ao Jornal Nacional e depois passo para esses canais a cabo e fico assistindo coisas sobre bichos, sobre regiões e adoro. E tudo isso facilita porque você vai assimilando. É lógico que o cérebro não é mais a mesma coisa. Mas dentro do possível garanto a você que não tomo nada de fósforo. È trabalho, é o interesse que a gente tem. Isso de uma certa forma eu transmiti para o meu neto mais velho que também gosta muito de ler, de estudar. Adora francês, por exemplo O meu tradutor oficial de francês vai ser ele. Acho que isso é da pessoa. Para cinema eu sou mais seletiva. Ir ao cinema por ir ao cinema não me agrada.

Livro e filme

De um modo geral o livro é melhor. Há muitos anos, toda vez que um livro faz sucesso e ouço que ele foi filmado, prefiro primeiro ver o filme para depois ler o livro. Porque normalmente se leio o livro e vou ao cinema acabo me decepcionando. O livro dá uma série de minúcias que o filme não pode dar. O filme é muito bom, visualmente é uma maravilha, uma grande parte deles acompanha muito bem todo o enredo. Mas o livro dá minúcias que o filme não pode dar. Então eu prefiro ver o filme. O filme foi ótimo. Então vamos ler o livro que é melhor ainda. E voltando ao que eu realmente gosto, que é a parte de natureza, gostei muito daquele” Derzu Uzala” . Achei maravilhoso. Não só do ponto de vista da paisagem, mas a amizade entre os dois foi uma coisa fantástica. Gostei de “O Nome da Rosa”. É um filme bem bonzinho. Soube, dentro do possível, acompanhar o livro. Eu agora quero ver esse “Homens e Deuses” que me disseram que é excelente. Outro dia assisti um filme francês com a Catherine Deneuve, “Indochina”? Não, passa na Indochina justamente quando os franceses a perdem como colônia. Quando jovem gostava muito dos musicais de Hollywood, que eram muito benfeitos. Aquele “Cabaret” eu gostei muito também. Mas diretor ou artista eu nunca tive nenhuma preferência. Nunca fui fanática. No cinema nacional eu vou ser muito franca. Os únicos que gostei foram “Bye Bye Brasil”. Gostei muito. E esse com a Fernanda Montenegro;”Central do Brasil”. Achei interessante. E “Dona Flor e Seus dois Maridos” achei muito bem feitinho. Achei que foi bastante fiel ao livro. Novela eu nunca me interessei. Só vejo o final da novela das 7 esperando o Jornal Nacional. Uma coisa que eu gostava quando nova era do Asterix. Achava genial. Hoje em dia acho que nem estão fazendo mais. O filme não me agradou muito. A gente está acostumada a certas figuras e por mais que eles consigam atores que lembrem, não é a mesma coisa.

Livreiros

Me dou maravilhosamente bem com todo mundo. O meu xodó é o Alberto, da Padrão. Na idade dele estar aí firme e forte. Olha...! Mas eu me dou bem com todo mundo. O pessoal da Elizart. Eu sou desde a época do velho Mattos. Agora são os filhos. Eu me dava muito bem com o da São José. O Carlos Ribeiro. Uma vez eu me lembro que ele comprou uma biblioteca só de folhetos. Tudo encadernado. As capinhas eram tipo papel pardo, mas em um amarelo mais claro.Mas a grande maioria dos livreiros do meu tempo já se foi, infelizmente. O Alberto da Padrão, por exemplo, tinha dois outros sócios. Um era português, Sr. Vieira. Aqui no Rio, curiosamente, todo mundo se dá muito bem ao contrário de São Paulo onde, não vou dizer que haja inimizade, mas a concorrência é maior. Ao contrário, se chega alguém aqui com alguma coisa que não me interessa eu mando para outro, ou o outro manda para mim. Graças a Deus, não há problema nenhum. Não há essa concorrência.Em São Paulo as grandes livrarias, tipo sebo, fecharam quase todas. Já com os livreiros novos eu tenho contato com alguns. Primeiro que há uma falta de tempo. Deles e minha. Antigamente a gente se visitava mais, eles vinham aqui. Mas, sou muito amiga do Daniel, da Berinjela. Francisco Isidoro, da Babel, também me dou muito bem com ele. Me dou muito bem com o Antônio, da Beta de Aquarius, no Catete. Conheço aquele rapaz da Folha Seca, o Rodrigo. Mas é como eu digo; passo todo dia na frente da loja dele. Todo dia. É o caminho para as barcas. Aqui o negócio é bem cordial. Não existe outra palavra. E sempre foi assim. Desde a época dos grandes livreiros. Era quase que amigável. Só não era mais porque cada um tinha lá os seus afazeres.

Acho que para ser livreiro a pessoa tem de ter um mínimo de conhecimento. Não é um comércio como outro qualquer. Tem de ter uma certa cultura. Existe uma velha piada. Uma pessoa entrou numa livraria e perguntou:”Vocês têm o livro “Raizes do Brasil”?”. O vendedor respondeu: “A sessão de botânica é lá atrás”. E isso não é Brasil só não. Tenho recortada lá em casa uma piada de um jornal inglês. Entra uma senhora na loja e pergunta: “Onde encontro Dickens?”. O vendedor responde: “Não sei minha senhora, ele não trabalha aqui.”

Anteontem entrou uma senhora aqui. Muita simpática, não era muita nova não. Ela disse: “A senhora me recomenda algum livro, romance, alguma coisa assim, para uma pessoa que gostaria muito de ler mas não costuma ler?”. Eu perguntei: “É para presente?”. Ela disse: “Não é para mim mesma”. Eu devo ter olhado espantada e ela me explicou que gostava de ler mas que nunca tinha lido nenhum livro e por isso tinha de ser alguma coisa muito leve. Acabei dando a ela um livro do Josué Montello que é fácil de ler e ela ficou muito satisfeita, agradeceu muito. Disse que se gostar vai voltar aqui para levar outra coisa. Devia ter uns quarenta e poucos anos, bem vestida. Não era qualquer pessoa e nunca tinha lido um livro. São essas coisinhas pequenas que dão muito valor ao que a gente faz. Mas você tem de ter um mínimo de conhecimento. Chegar numa livraria e perguntar : “Tem alguma coisa do Nietzsche?”. E a pessoa virar e lhe perguntar: “Quem foi Nietzsche?”. Aí não dá. Por isso eu acho que o livro é muito especial mesmo.

A sócia

A Amélia não tem tradição no ramo livreiro. Mas eu tiro o chapéu para ela porque é muito interessada. Quer aprender as coisas. Faz perguntas e realmente tem futuro. Eu realmente estou numa idade em que preciso de alguém que continue isso, para o trabalho não terminar. E ela realmente gosta e se interessa. Primeiro eu tinha sociedade com o pessoal da Susan Bach, uma livreira de Botafogo. Aliás a Susan já faleceu e depois eles quiseram sair. E eles são muito mais limitados a exportar livros brasileiros. Não é uma livraria de porta aberta. Depois o Maurício e a Amélia, clientes da livraria, estiveram aqui conversando sobre o interesse deles e do Antônio, da Beta de Aquarius. Eu sei que no final das contas ficamos nós duas. O Maurício tem a profissão dele. Ele é professor, não tem tempo, mas dá um bom apoio. Sócias mesmo somos nós duas. A família dela é tradicional no ramo de colégio e ela está acostumada com essas coisas. E ela tem muito interesse. Dá gosto de ver. E como lida bem com o público não tem problema.