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O livreiro herói


Em 2016, Daniel Louzada salvou do fechamento a mais antiga livraria independente do Rio, a Leonardo da Vinci, e atravessou com ela os três piores anos do mercado editorial nacional. Em 2019, ele começa a tomar  fôlego e diz que sua ação misturou idealismo e falta de juízo.

A Leonardo da Vinci foi citada no best-seller europeu  Livrarias - Uma história de leitura e de leitores, do espanhol Jorge Carrión, lançado aqui no ano passado. Ao falar de livrarias de todo o muindo, ele diz que há três requisitos para uma delas se tornar notável: antiguidade, extensão e ligação com a vida literária.

A Da Vinci foi a preferida, entre outros,  de Carlos Drummond de Andrade que, em poema dedicado a ela, enfatiza a localização: ”Ao peso do concreto de vinte pavimentos/ a loja subterrânea expõe os seus tesouros/ como se os defendesse de fomes apressadas.”

A livraria começou em 1952 no décimo oitavo andar de um edifício na Avenida Presidente Vargas com  livros em francês. Três anos depois foi para o  então recém construído Edifício Marquês do Herval, um dos pioneiros da arquitetura moderna na cidade e o primeiro com galeria no subsolo,.

Ali, se expandiu  até ocupar 5 lojas e viver momentos dramáticos como o incêndio criminoso que a destruiu na época da ditadura militar e o vazamento em 2010 que fez chover esgoto sobre os livros. Depois, viu chegar outras livrarias; Berinjela, Martins Fontes e Disal que, com ela,  formam hoje a Galeria do Livro, no Marquês do Herval.

Mas desde o advento da internet e as mudanças no perfil das livrarias a Leonardo da Vinci entrou em crise que a fez diminuir em tamanho. Em maio de 2015 uma matéria no jornal O Globo tornou público o que muitos do mercado suspeitavam; “Inviável – Livraria Leonardo da Vinci anuncia o fechamento”.

Milena Duchiade, filha de Andrei Duchiade e Vanna Piracinni, fundadores da livraria, alegou que a pá de cal para o fechamento foram as obras de implantação pela prefeitura do Veículo Leve sobre Trilhos – VLT,  que começaram em 2014 e deixaram a avenida Rio Branco intransitável.

Embora decidida a fechar, ela se mostrou aberta à negociar; disse que seu sonho era que a livraria continuasse com outros donos. Após meses de expectativa entra em cena Daniel Louzada.

O sonho dele era ter sua própria livraria depois de trabalhar 15 anos na Saraiva, de livreiro da área de humanas numa loja em Porto Alegre até gerente geral na rede em São Paulo. Com Daniel a Da Vinci  foi reformada por quatro meses, enquanto funcionou provisoriamente em uma loja vaga ao lado.

Na reinauguração, um debate com o poeta e filósofo Antonio Cícero, outro que homenageou a livraria em poema, mostrou que a nova loja seguiria a linha da antiga Da Vinci, conhecida também pelos eventos.

Segundo Daniel, que na época da reinauguração falou em abrir uma segunda loja com um sócio, manter a Da Vinci tem sido um grande desafio mas esse ano houve um pequeno crescimento, em parte devido ao fechamento das lojas da Saraiva e da Cultura no Centro.

Ele trabalha com três funcionários e, além das compras, responde pelas redes sociais, produção de eventos e financeiro. Diz ter um cotidiano bastante absorvente onde não é raro trabalhar 14 horas; “ na semana passada isso ocorreu quase todos os dias”.

A dificuldade do leitor encontrá-lo na livraria  é compensada pelas sugestões, em geral escritas por ele, em post it amarelo colado na capa dos livros. Na de O Idiota se lê : “O que você tem feito na vida que ainda não leu o Dostoievski? Desconecta.”

A promoção Encontro às Cegas também dá relevância à opinião do livreiro; livros lacrados em papel pardo onde há apenas pistas sobre o conteúdo; “obra censurada numa realidade not very far away”, diz o texto escrito à mão em um deles.

Na primeira semana de maio, quando o governo anunciou cortes de verba para as universidades federais, a Da Vinci promoveu o evento Balbúrdia, um sábado em que professores ou alunos de universidades tiveram 20% de desconto, ao levarem um quilo de alimento para a campanha Periferia sem Fome.

Foi o recorde de movimento para um sábado e ratificação da postura da livraria que procura maior envolvimento com o público e a comunidade; “a Da Vinci possível para o nosso tempo”, diz Daniel.

 



O que diferencia a Livraria  Leonardo da Vinci atual da de antes?

Essencialmente, não trabalho com livros importados que durante muito tempo foi o carro chefe da livraria. Ela  foi pioneira em trazer pensadores, títulos e tendências para  o país. Os poucos importados que tenho são de editoras  com representação aqui. Não compensa importar  pelo câmbio e porque o padrão de concorrência mudou com a internet. Antes da transição a Da Vinci já sentia a força dos novos atores desse mercado. Nosso foco continua em ciências humanas e tenho uma área de literatura, que não é meu carro chefe. A rigor trabalho com todos os gêneros, mas alguns apenas com uma mostra; direito, área técnica, seção infantil. Trabalho com muitas editoras independentes que antigamente não havia, inclusive porque muitas surgiram nos últimos anos. Procuro absorvê-las; há editoras que só eu tenho aqui no Rio.

O que mudou no ambiente para a experiência do cliente?

Meu objetivo foi ter um espaço em que as pessoas ficassem mais tempo. Isso se concretizou. Há 60 cadeiras no café, melhoramos o WiFi com fibra ótica,  temos tomadas para os clientes trabalharem; fazerem reuniões, muitos professores de idiomas dão aula aqui. A música de fundo tem uma playlist que está no Spotify , vai do tango à MPB. Misturamos música francesa, pop/rock inglês, forró. A música tem uma presença importante  e tocamos todos os gêneros, inclusive clássica, mas com a nossa visão sobre aquilo que tem a ver com a livraria. O livro está disponível em muitos lugares, então a questão é fazer o leitor chegar a ele. O trabalho de livreiro tem paralelo com o do editor; selecionar, fazer os livros se relacionarem, criar no leitor o interesse em pegar o livro, folhear e comprar.

Como os clientes antigos reagiram às mudanças?

Não há como contabilizar, mas a amostragem das manifestações tanto presenciais, como nas redes sociais indica que houve mais aprovação que reprovação. Há os clientes que preferiam o modelo antigo;  os que compravam livros importados, por exemplo. Houve muitas manifestações de carinho, de torcida. O fato de mantermos a Da Vinci aberta deixou as pessoas impactadas e felizes porque a notícia de que ela iria fechar foi uma comoção na cidade. Num arquivo de jornal sobre ela, na época da ditadura, um escritor disse que a Da Vinci era mais importante que o Ministério da Cultura. Sobretudo naquele momento em que ela tinha uma centralidade e uma livreira como Dona Vanna. O fato de manter uma livraria com essa história é, por si só, uma vitória, nesse contexto muito ruim para o país, não só de crise econômica, mas de crise do livro e nessa situação desoladora em que se encontra o Rio.

O número de eventos  na livraria aumentou em sua gestão?

Enormemente. Cheguei a fazer 28 eventos em um mês. Eles também promoviam, mas não com essa regularidade; era outra proposta. Hoje a livraria tem de se diversificar e oferecer mais ao cliente. Queremos ser quase um espaço cultural, porque o livro se  encontra  em outros lugares. Estou completando 300 eventos, o que  é um orgulho. Uma loja independente praticamente não recebe eventos das grandes editoras. Aqui no Rio há o problema da localização, que não consigo entender, porque temos um espaço extremamente qualificado para 70 pessoas sentadas. Em novembro  reunimos 400 pessoas com o governador do Maranhão Flavio Dino. Tivemos 250 com o filósofo italiano Antonio Negri. A maior parte dos eventos são de uma agenda própria, não são lançamentos. Monto um debate com autores, professores, atores, muitos voltados para ciências humanas. Mas há dias com três pessoas na plateia , faz parte. Na média são cerca de 40 por evento. É necessário  para uma livraria independente criar essa cultura. Isso renovou bastante o nosso público.  De uma maneira modesta a Da Vinci tem contribuído para a cidade nesse sentido. Também temos mini-cursos. Recentemente houve um de história e outro sobre mercado editorial.

As redes sociais tornaram a posição política da livraria mais explícita?

Sim. Uma livraria tem de se posicionar ao lado do pensamento crítico. Não existe livraria neutra. A livraria trabalha com  a reflexão, a afirmação e negação de ideias; com a liberdade de expressão. Nossa linha histórica é em defesa do pensamento crítico e circulação das ideias. Há uma tentativa de diminuir, dizer que somos de um nicho, que livrarias como a nossa são de esquerda. Mas não se fala no discurso único que as grandes redes tiveram em certo momento. Não são chamadas de direita,  uma hipocrisia gigantesca. Na época da presidente Dilma só havia nelas livros favoráveis a uma visão, a da Lava Jato. Aqui vendo todos os livros, tenho o Olavo de Carvalho, editora Vide. Recebemos aqui muitas vezes a Marielle, com muito orgulho. Sediamos debates que não têm espaço em outros lugares; que geraram hostilidade. Fomos muito atacados quando fizemos uma promoção em defesa da exposição do Queer Museu. O ódio é organizado; tínhamos a maior nota entre as livrarias no Facebook,  agora , temos uma das menores porque um exército do ódio entrou na nossa página para denegrir, dar nota 1. Seria mais cômodo não fazer nada como muita gente. Mas não é a minha posição. Embora a Da Vinci não tenha mais a centralidade que viveu, precisamos contribuir no debate intelectual. Se não, para que eu teria uma livraria?

Acredita que  outras livrarias vão se posicionar como fazem nos EUA contra o Trump?

Tem de ser perguntado aos livreiros;  em quem votaram? Seria uma pesquisa interessante também junto às editoras. O mercado do livro tem uma tradição liberal no mundo todo. Nos Estados Unidos é uma tradição liberal de esquerda, porque é uma atividade que demanda liberdade de expressão. Lá não existe essa discussão sobre o papel de uma livraria independente como a  Da Vinci. Isso revela o nosso atraso. Aqui livrarias decidem, em nome de uma pretensa neutralidade não se posicionar. Mesmo editoras não se posicionam quando está em jogo a liberdade de expressão, os direitos democráticos. Mas cada um segue sua linha; acho que há  muitas livrarias boas no Brasil. A Folha Seca é uma delas, mas não só as pequenas. A Blooks está fazendo um ciclo de debates sobre feminismo importante. Visitei em São Paulo a Simples, muito simpática, com um pessoal trabalhando a cultura. Se você tem uma livraria de ciências humanas haverá um debate político ali. Mas há outras empresas com outras propostas, que são válidas. A diversidade é necessária. Mas aqui, ao contrário de outros países, não se discute algumas questões e as entidades não se posicionam diante de temas que deveriam ser pacíficos; defesa da democracia e da liberdade de opinião. Acho a neutralidade uma falácia; há um direcionamento. Os livros que você coloca nas mesas dialogam com o público. Aqui vendo de tudo mas o do Ustra não vendo. Sei que é um documento, se  houver uma introdução histórica ele terá seu valor. Mas eu não vendo, enquanto há livrarias que espetacularizam sua venda, colocam em grandes pilhas. Não condeno quem venda; eu escolho não vender. Mas espetacularizar é outra coisa.

Você previa a crise das grandes redes aqui como aconteceu antes nos EUA?

Prever não. Li alguns livros e sabia o que  ocorria no mercado americano desde os anos 90; a concentração e seus efeitos, a chegada da Amazon. Aqui são muitos fatores. No caso da Saraiva e da Cultura, tem a Amazon, mas há questões internas, o país, o contexto; uma tempestade perfeita. Um ponto importante é a fraqueza do nosso mercado; muito pequeno, uma fração da indústria do entretenimento. Essa debilidade enfraquece; poderia haver questões pontuais em determinadas empresas  sem o impacto avassalador da  crise na Saraiva e na Cultura. Quando a Saraiva compra 25% de uma tiragem, a Cultura mais 10%,  e de repente isso acaba, não há como substituir. A indústria do livro  é fraca; não temos massa de consumidores. Precisamos de um mercado de massa e não do livro sacralizado; ler é uma diversão e um instrumento de conhecimento. A Saraiva  e a Cultura perderam muito inclusive no acervo que está debilitado e  é uma tragédia. Podemos questionar várias coisas com relação à política dessas empresas mas mal ou bem eram elas que abriam lojas em Manaus, Fortaleza, interior do Brasil, aqui na Zona Norte. Estamos voltando a uma certa elitização do mercado. No Rio as livrarias estão concentradas na Zona Sul e em São Paulo na região da Paulista. Nunca vi uma livraria independente abrir loja em bairro pobre. Uma curiosidade é que na lista de mais vendidos da década de 80 tinha Umberto Eco, Guimarães Rosa, Rubem Fonseca, e todo mundo diz “ Antigamente nós éramos muito melhores nas leituras, agora só tem  autoajuda”.  Não. Isso era o retrato da exclusão social, quem consumia livro era uma elite. A leitura de autoajuda e sucessos populares são importantes para o mercado porque possibilita que a editora tenha caixa para investir em obras de menor circulação.

Como vê  a atuação das entidades do livro?

As entidades têm um papel  para organizar um pensamento e  ações em relação ao livro, mas eu como livreiro tenho desafios tão grandes que isso tudo passa  ao largo. Estou preocupado com minha sobrevivência, em manter a Da Vinci aberta, faço por mim. Acho relevante pensar o negócio como fazem diferentes entidades do livro, os projetos, o diálogo com o poder público. Sou super a favor da Lei do Preço Fixo, mas com esse governo, com a visão do que é educação e a aversão ao pensamento crítico  a lei definitivamente não sai. Tenho absoluta convicção. É retórica essa discussão do Preço Fixo hoje. Não tem nenhuma base social ou política para uma lei como essa avançar. Está havendo uma regressão em outros campos em termos de leis e projetos de educação e cultura. A lei do preço Fixo seria um filhote único? Mais importante  é , numa perspectiva de médio e  longo prazo, uma ação conjunta das editoras e  livrarias. É  mais eficaz. Campanhas retóricas são válidas, mas não basta dizer que a livraria independente é importante quando muitas editoras não fornecem para as independentes. Todos  temos esse problema, não só a Da Vinci. Fica aquele discurso de paz, discurso de Miss; "Quero paz no mundo". Todo mundo sabe que livrarias são importantes; precisamos de coisas concretas: condição comercial, fornecimento, evento, desconcentração geográfica.

A Feira do Livro, hoje na Cinelândia, afeta a sua loja?

Sim prejudica. É uma bagunça. Não há regramento. Se eu colocasse uma banquinha ali para vender livros  seria multado na hora . A Feira esteve no Largo da Carioca e na sequência foi para a Cinelândia. São livros promocionais, livros ponta de estoque, livros usados, mas é venda de livros. Aqui pagamos IPTU, está tudo indexado e você tem ao seu lado uma feira como aquela. Já temos outra feira no Largo da Carioca, na saída do Metrô com livros novos que não vêm da editora, de  procedência duvidosa. Claro que isso prejudica. Feiras de livros são importantes para disseminar a leitura, mas por que colocar do lado de onde há livrarias? Coloque onde há fluxo de gente mas sem livraria por perto. Não há planejamento algum.

E as feiras  de editoras?

São dois aspectos; em tese seria contra, mas todo mundo está tentando sobreviver. Jamais posso ter a pretensão de condenar uma editora por estar vendendo direto. Principalmente as independentes, elas não conseguem distribuir seus livros. Somos prejudicados, mas é assim. Sei de muitas editoras que sobrevivem porque os seus donos consomem um patrimônio pessoal para  editarem livros. Nunca vou conseguir  vender um livro que está no site da editora com 50 % de desconto. Ela também está no marketplace com 50%. Agora mesmo teve a  Feira da UNESP e tenho livros de todas editoras que estavam lá. Para a cadeia do livro isso é ruim, mas é a realidade.

Como é a feira que faz com as outras livrarias no Marquês do Herval?

É no primeiro sábado de cada mês; coincide com a Feira do Lavradio. A ideia surgiu entre eu e o Daniel da Berinjela para movimentar o sábado, dia de pouco movimento. Tivemos edições muito boas, outras menos. Mas conseguimos uma melhora no faturamento com pessoas que não viriam aqui. Nossa tarefa é fazer muita ação, seja em eventos ou promoções. Nos outros sábados, independente da feira, faço promoções pontuais. Fiz promoção na loja toda, mas como o preço do livro é defasado isso entra na nossa margem de lucro e evitamos.  O normal são descontos pontuais ou lotes que negociamos com editoras, com livros  dos catálogos, mas preservando nossa margem. Colocamos uma ou mais mesas sinalizadas com promoções bem atrativas. Promoção faz parte do negócio e atrai cliente, não dá para negar.  Junto, as pessoas compram outras coisas e o efeito é bastante benéfico. Só não pode ser toda hora; não vendemos promoção, vendemos livro. Mesmo na feira eu exponho dentro da loja e não ocupo o espaço do corredor. O objetivo é que as pessoas entrem na loja. Faço mais eventos com a Berinjela porque as outras são mais direcionadas. Mas acho que aqui elas se complementam. A Disal é mais idiomas, a Martins Fontes  tem o acervo próprio da editora e idiomas também. A Berinjela é uma livraria referencial  de livros usados. Acho que quem vem aqui vai se surpreender. E o Edifício Marquês do Herval por si só já é um evento.

Em que medida as mudanças no entorno do edifício afetaram  a livraria?

Conheci a Da Vinci em  2000, primeira vez que vim ao Rio, mas não sei como era o dia a dia na livraria. Havia o trânsito, ônibus passando em frente, mas houve tantas outras mudanças que afetam o movimento que não posso afirmar o impacto do  fechamento da avenida nesse trecho com a implantação do VLT. Temos o contexto de crise econômica com a desmobilização de vários prédios públicos  com funcionários que  frequentavam a livraria. É um conjunto de fatores. Mas a localização da Da Vinci é a melhor possível, com a estação Carioca do Metrô do lado, ônibus no entorno, o VLT na porta. Nosso desafio é tornar a loja conhecida. Todo dia  alguém diz; "não conhecia essa livraria". Isso é bom porque mostra que temos um território a conquistar. Muita gente não conhece a Da Vinci, porque fica no subsolo. Agora  mudou a fachada do edifício e vamos colocar na entrada uma indicação de  que aqui há uma Galeria do Livro. Vai ser algo na altura dos olhos. O letreiro que havia acima da entrada com os nomes Da Vinci e Berinjela tinha pouca visibilidade.

No Rio, só a Leonardo Da Vinci adota a venda  Encontro às Cegas?

Não,  a ideia já foi copiada, sem nenhum demérito; cópia é uma prova do sucesso. Primeiro foi a Saraiva, depois a Livraria da Vila, em São Paulo. Nem sei se copiaram de mim. Eu copiei de livrarias dos Estados Unidos e sei que existe na França e em  outros lugares. Nesse esquema já vendemos mais de mil e quinhentos exemplares e tivemos apenas cinco trocas de clientes que não gostaram dos livros. O Encontro às Cegas nada mais é que a velha e boa indicação do livreiro. O leitor mostra que confia em você; a diferença é que não vai ver a capa. São livros que eu ou algum membro da equipe leu, gosta e sabe para quem indicar.  Já nos ofereceram pagar para ter o livro no Encontro às Cegas. Não que isso fosse dar um grande retorno, mas outro orgulho que temos é de não vender espaço. Nas redes boa parte do espaço  sempre foi vendida.

Consegue acompanhar os lançamentos para  indicar aos clientes?

Estou sempre lendo. Leio à noite, nos fins de semana, no metrô. Já li bem mais do que hoje, mas o livreiro tem de ter um repertório, é a partir desse repertório que consegue dialogar com o leitor, chegar à subjetividade do outro. Não sou um grande leitor de ficção, mas gosto; é uma leitura que dá um panorama bastante vasto. O livreiro é um grande conhecedor de livros que ele não leu. A Zahar tem um livro chamado como Falar dos livros que não lemos. O livreiro tem de saber se posicionar. Todo dia chegam uns 20 lançamentos e você tem de saber relacionar uma coisa com a outra. Sou um grande leitor de contracapas e orelhas de livros. Tenho de saber os temas e através das outras leituras conseguir indicar. Há livros referenciais importantes que não li e provavelmente não lerei. Mas sei do que se trata e quais autores são afins. Esse é o trabalho de um livreiro. Aqui, também sou eu quem coloca os posts nas redes sociais, fotografo os eventos. Temos de atrair a atenção na internet, o que é um desafio e muitas vezes você atrai com algo inusitado, uma gracinha. Mas isso é irregular, é feito de forma precária. Tentamos pelo menos noticiar o que está acontecendo na livraria, colocar fotos dos autores. Mas a vida da livraria é muito mais rica que isso e fico com uma certa frustração. Acontece muita coisa, muita gente interessante com quem conversamos. Situações que poderiam ser retratadas e acabam não sendo. Nosso site está fora do ar e vamos retomar. Tivemos uma experiência mas desativamos, porque o resultado foi muito aquém do que esperávamos. Nosso parceiro no site era muito competente, mas o modelo de livraria que mostramos não representava a Da Vinci. Não conseguimos reproduzir on line o nosso diferencial da loja física. Ficou aquém mesmo em termos de acervo. Mas os livros que postamos no Instagram estão disponíveis para compra, há também uma loja no FaceBook.

Como foi a sua entrada no mercado livreiro?

Atendi a um anúncio  no jornal  Zero Hora em 1992; uma livraria procurava funcionários para uma loja que iria abrir. Não dizia ser a Saraiva. Na época eu era estudante de história. Trabalhei desde os 13 anos, antes como office boy,  auxiliar de escritório, caixa de agência lotérica e estagiei na área de história. Na época digitava trabalhos na máquina de escrever. A notícia da aprovação veio dois dias antes do meu aniversário; foi um presente para mim , porque  precisava do emprego. Comecei como vendedor da área de ciências humanas por um ano até ser promovido a subgerente de loja onde fiquei por alguns meses e ter  minha candidatura para  ir para São Paulo aceita. Lá fiquei 15 anos; montei muitas lojas, estandes em Bienais. Durante 8 anos fui gerente geral da área de interesse geral, isso sempre na administração, nunca em loja. Foi uma ótima escola porque na Saraiva conheci muita gente competente. Em 2015 sai da Saraiva e vim para o Rio para me casar.Na época do anúncio do fechamento, eu ainda trabalhava na Saraiva e vim conversar, por pura especulação, com a Milena, com quem nunca havia falado antes. Tinha um  respeito ritual, olhava  as coleções em francês nas estantes; um templo, uma livraria com mais de  60 anos no Brasil por si só é uma instituição. A partir dali começou  a nascer o sonho, misturado à falta de juízo. Não tive livros em casa até a adolescência. Foi uma infância com desafios, minha mãe era faxineira em uma escola, mas graças a ela e à leitura de jornais me tornei um leitor; muito jornal velho, Zero Hora, Correio do Povo. Depois a situação melhorou, entrei para uma universidade pública, passei a ler muito, na biblioteca, conseguia comprar uns livros. Sempre sonhei em fazer uma livraria com o que gostava mas era uma coisa ideal. Mesmo sendo um negócio Imagino que todo livreiro tenha esse ideal, porque se não estaria vendendo outra coisa e ganhar mais.

Há diferença entre Rio e São Paulo quanto aos profissionais do mercado?

Acho que não. Toda cidade tem uma identidade, mas as pessoas são diferentes. Trabalhei bem em São Paulo, gosto da cidade, e trabalho bem aqui e gosto  das pessoas. Não acredito nos estereótipos. Há gente que trabalha bem em São Paulo, no Rio, Salvador, Porto Alegre. O que  há  é uma depressão econômica maior  no Rio.  São Paulo vive a crise brasileira mas, para o livro, que é um mercado essencialmente classe média,  é mais pujante. Vejo livrarias grandes que, até onde eu sei, estão bem. A Martins Fontes,  muito respeitada, com acervo muito bom e há outras livrarias pequenas boas nos bairros.  O mercado lá está melhor mas  não se deve às pessoas. Gosto da informalidade do  Rio, fiz amigos aqui. A  cidade  é uma síntese, para o bem e para o mal, de várias coisas do Brasil. A vida difícil não fará que a gente vá desistir da cidade. O Rio tem muita história.  Gosto do Centro. Quando  vinha visitar as lojas da Saraiva  e me sobrava tempo  vinha conhecer  o Centro; o patrimônio, a história, a vida das ruas. Onde há uma livraria como a Folha Seca, com a sociabilidade que ela gera? Só é possível no Rio, assim como São Paulo tem suas coisas. Temos de valorizar o que resiste e existe  na cidade. Sou um pouco carioca e acho que esse período de trevas será superado, mais que com resistência, com ação. Há trevas, mas existe a luz e sem pretensão, uma livraria contribui para isso, trazendo autores, fazendo debates, mostra que a história não começou agora e não acaba agora.

Se sente realizado como livreiro?

Tenho muito orgulho da Da Vinci e muita responsabilidade porque ela é uma continuidade da história que começou em 1952. É a mesma livraria, uma continuação; a Da Vinci possível para esse tempo. Quando foi anunciado o fim da livraria houve uma comoção, milhares de pessoas compartilharam a notícia nas redes, mas tenho um pouco de preguiça com a retórica; ela não enche barriga. Quantas daquelas pessoas voltaram aqui para comprar um livro no último ano? A melhor maneira de apoiar uma livraria, ou qualquer comércio no seu bairro é comprar nele. Ou participar de algum evento e tomar um café. Não adianta lamentar depois que fecha. A antiga gestão fez muito para manter a Da Vinci, assim como eu nesse período fiz muita coisa, com muito sacrifício pessoal. Acredito que todos livreiros que sobrevivem de livrarias independentes façam isso. A gente não precisa de retórica. O post com apoio é legal mas o que importa é a pessoa vir à loja e comprar algo, por menor que seja. Torcida não ganha jogo. Temos uma baixa consciência cidadã de lamentar depois que as coisas fecham. Felizmente aqui há uma clientela antiga, e nova, assídua e fiel, mas tem de crescer. Muitos vêm e não compram, outros fazem questão de comprar. Porque essa é a diferença do pequeno comércio; você acaba desenvolvendo relações pessoais verdadeiras . Há livrarias que funcionam como loja de conveniência, a pessoa compra e sai. Mas no ponto onde estou não pode ser assim. Tenho de trazer as pessoas para cá, para verem e ficarem. Já promovi festa de aniversário, como é feito por livrarias americanas. É algo que remunera  porque o espaço é alocado e ao mesmo tempo integra, fica na memória das pessoas, ajuda na sociabilidade local. Nos Estados Unidos é muito comum o consumo político. As pessoas compram na livraria não por ignorar  a venda on-line mas por optar por consumir localmente. Sabem que é importante estimular o debate local, a livraria do bairro. Isso existe na Inglaterra e em outros países. Aqui há uma baixa consciência cidadã e democrática; temos de estimular isso principalmente em cidades que possuem essa massa crítica possível.

Ainda há o  projeto de abrir uma nova loja da Leonardo da Vinci?

Inaugurar está fora de perspectiva. Meu projeto é continuar existindo com a nossa cara, fazer o que acredito,  trazer pessoas para cá com nossas pequenas iniciativas.  Sou um pequeno livreiro e todas as pequenas ações são importantes porque vão somando. Lógico que gostaria de abrir outras lojas mas isso não está no meu horizonte nem para esse ano nem para o próximo. Espero é que a Da Vinci continue a  fazer sentido para muitas pessoas como faz hoje. Ela tem um lugar e para mim isso é importante. Ser livreiro é importante e também muito desimportante. O que aprendi ao trabalhar com o livro foi dialogar sem arrogância com ninguém, seja o seu leitor ou alguém que entra pela primeira vez em uma livraria;  o que acontece todo dia. A livraria sempre foi um ambiente elitista, em que o conhecimento serve como instrumento da arrogância, o que é uma coisa bem brasileira. Vi  isso muitas vezes, inclusive em livrarias; a leitura de algo como instrumento de autoridade em relação ao outro. Se sentir desimportante, ignorante, é um exercício diário. Todos sabemos que estamos sempre aprendendo, mas isso é a retórica. A prática é mais importante e é o que tento passar para as pessoas que trabalham comigo; estar sempre aberto.

 

07/05/2019