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A força do agente literário


Figura da cadeia produtiva do livro pouco conhecida no Brasil, com papel fundamental tanto no mercado editorial como em outras mídias culturais, tem em Luciana Villas-Boas da VB&M um exemplo da sua relevância.

Ex-editora do caderno Ideias, do Jornal do Brasil,  ex- diretora editorial da Record, Luciana está, desde 2012, à frente da agência literária VB&M,  que tem sede no Rio e escritórios em Atlanta e Nova York, junto com o marido, o advogado norte americano Reymond Moss.

Com amplo conhecimento do mercado editorial, ela sabe em que livro apostar como fez com A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, recusado por todas as grandes editoras brasileiras, mas vendido por ela para editoras estrangeiras, transformado em filme premiado em Cannes,  e  aí então arrematado em leilão entre as editoras nacionais pela Companhia das Letras.

O filme, baseado no livro, teve o nome reduzido para A vida invisível,  foi premiado na mostra Un Certain Regard, em Cannes, indicado para representar o Brasil no Oscar e no Independent Spirit Award, e chegou às manchetes dos jornais quando teve cancelada sua exibição para funcionários da Ancine no que o diretor Karin Ainouz qualificou como  ato de censura.

Luciana recebeu a AEL em sua cobertura  com vista para o Mirante do Leblon, e  de onde também se avista, a um quarteirão de distância, o prédio em que funciona a agência VB&M no apartamento em que ela residia antes.

Numa época de reuniões virtuais por Skype e Whatsaap ela comenta que a ideia de home office não é muito feliz pois há a necessidade das pessoas  sairem de casa para trabalhar e terem um convívio real com outras pessoas , fator importante na manutenção da sanidade

O escritório, no entanto,  é uma extensão de sua casa. Além da proximidade e de ela já ter morado alí, soma-se a presença do seu filho Miguel Sader na equipe de três pessoas que lidera e mais dois cachorros, um deles Nelson, um wheaten terrier de 11 anos que vive com ela e a acompanha à agência todo dia.

“Ele é muito conhecido no Leblon, é uma personalidade, o cachorro mais inteligente que já tive”, diz a dona. Nelson é apresentado no site da agência como membro da equipe com o sobrenome Villas-Boas e com as funções de segurança e bloger, já que seu nome vem abaixo de alguns artigos.

O amor de Luciana pelos animais se mostra já na mesa de centro da sala de estar de sua casa onde estão  livros sobre cães como The dog observed – funny dogs e I could chew on this – and other poems by dogs. Todos em língua inglesa; “queria que se publicasse mais sobre cachorros aqui”, lamenta.

Segundo ela a literatura sobre animais não é um filão forte no Brasil, fora os do estilo Marley e eu que repercutiram no cinema. Mas, como editora, Luciana possibilitou a publicação no Brasil de A cabeça do cachorro – o que o seu amigo mais leal vê, fareja, pensa e sente , um estudo da psicologia canina feito pela norte americana Alexandra Horowitz que traz na capa da edição nacional... Nelson.

“Acredito muito que você só pode ser uma pessoa boa se tiver um olhar para os animais” diz  ela, citando um dos seus atuais livros de cabeceira; How to be a good creature – a memoir with thirteen animals, onde a naturalista Sy Montgomery narra suas memórias a partir do relacionamento com 13 animais.

 

 

 

 

O que achou da polêmica em torno do filme A vida invisível?

Em uma sociedade razoavelmente democrática e com imprensa e mídia livres, toda ação arbirtrária acaba revertendo contra quem a perpetrou. Nesse caso da  proibição de Vida invisível na Ancine, acabou se jogando ainda mais luz sobre o filme e, consequentemente, sobre o livro. Espero que os funcionários da Ancine que não puderam ver Vida invisível de graça venham a comprar o ingresso nos cinemas, ver o filme e, tudo dando certo, ler o livro. Não sei se foi um caso de censura porque não se está impedindo o acesso à obra. O que se fez foi não propiciar o acesso. Não houve uma proibição nem da realização nem da exibição, o filme está aí para quem quiser ver.

A versão para o cinema  já tem revertido na venda do livro?

Muito. Foi extraordinário o aumento de vendas do romance principalmente a partir do momento que o filme ganhou o prêmio na mostra Um Certain Regard, no Festival de Cannes. Já houve duas prestações de contas para apresentação dos royalties e observei aumentos de vendas consecutivos. O cinema faz isso, mas, claramente, só quando o filme é bom.

E o que você achou do filme?

Gostei, mas é bem diferente do livro. Não só na forma, ou na linguagem; o livro é uma tragicomédia enquanto o filme é um melodrama. Não me lembro de momentos engraçados no filme nem espaçadamente, enquanto a ironia, a sátira de costumes e o humor sutil são o forte do romance. Nisso não vai uma crítica. Acho que comédia para funcionar em cinema tem de ser totalmente autoral. O Woody Allen não contrata nenhum argumento de fora, é tudo dele. Tem algumas exceções, claro, o Auto da Compadecida, baseado em Ariano Suassuna, foi uma boa comédia adaptada. Mas não é comum.

Muitas vezes o cinema trai os livros?

Não, porque a história que inspira o filme vira outra coisa. Está se tratando de outro produto,  outra mídia, outra forma de expressão artística. Não é uma traição. A tradução, que busca refletir perfeitamente o original em sua expressão literária,  justifica mais o uso da expressão “tradutor, traidor”.  Mas o cinema tem que fazer isso. O filme não é da Martha Batalha; é do Karin e de uma equipe imensa, um empreendimento coletivo, enquanto o livro é individual. Só tenho pena  que a necessidade de fantasia e abstração das pessoas esteja sendo tão atendida pelo audiovisual, principalmente pelas séries de televisão. O papel de quem assiste a uma série de TV é necessariamente menos  ativo que o papel do leitor, que é criador; ele cria o livro na sua cabeça. Por isso, às vezes, não se reconhece o livro que se leu no discurso de outra pessoa narrando exatamente a mesma obra: a leitura foi outra.

Como vê o audiolivro, mídia que tem feito sucesso lá fora?

Minha impressão é que aqui no Brasil ainda não se consolidou como hábito de consumo. Mas espero que o audiolivro entre e se consolide. As editoras de audiolivros estão vindo muito fortes e, nesse momento tão difícil para o mercado como estamos vivendo no Brasil, é uma opção interessante para os autores. As editoras de audiolivros estão entrando cada vez mais na ficção e na autoajuda e menos na não ficção mais séria. Acho que o audiolivro funciona para a literatura porque é como se alguém estivesse lendo para você. O processo de ouvir também exige bastante da imaginação. Gosto muito de cinema mas sou muito pouco audiovisual. Não aprendo nada ouvindo, não gosto de palestras, só aprendo lendo; e só aprecio lendo. Quase não vejo televisão, mesmo com essas séries que parecem ser ótimas. Mas isso é uma idiossincrasia minha.

A VB&M também agencia as obras para o cinema?

Sim, mas nós não representamos roteiros. Representamos a adaptação da obra literária para o teatro e para o cinema. Já  temos mais de 50 contratos de adaptação audiovisual. Os únicos dois que renderam produtos que já podemos assistir são a Vida Invisível de Eurídice Gusmão e Se eu fechar os olhos agora, do Edney Silvestre, que virou minissérie da Globo. Para se ver o grau de dificuldade que é a produção de um filme. Os outros quarenta e tantos contratos estão em diferentes fases de realização, mas na maioria bem atrasados.

Como é o trabalho na agência com tantas ações para uma equipe pequena?

Todo mundo faz basicamente tudo; não há muita hierarquia. Obviamente, tenho um papel institucional maior e tento  trazer os grandes nomes de autores brasileiros que queremos representar. Mas o que tem de ser feito para o negócio se expandir é limitarmos o número de clientes individuais aos que já estão lá. Não estamos procurando novos clientes, porque representar o autor individual é um trabalho insano, toma um tempo imenso, com uma dimensão emocional muito pesada; a relação  do agente com o autor é muito intensa. Com o editor tão sobrecarregado, a interlocução entre ele e o escritor está prejudicada; fica tudo em cima do agente. Você doa um tempo muito grande que não é rentável. Representar catálogos estrangeiros, de editoras ou agências, para o Brasil é bem mais interessnte.  Aí a relação é com um profissional que não tem nenhum investimento emocional em cada obra. São profissionais que sabem as limitações de cada mercado e não têm uma expectativa irreal com relação àqueles livros. Quando os autores nos enviam textos aviso que não estamos acolhendo novos clientes. Só abrimos exceções, eventualmente, para grandes autores já consagrados como a Mary Del Priore, historiadora, que veio recentemente para nossa agência. Um editor sugeriu que mudasse de agente e ela acolheu a opinião. Mary acabou de lançar  Dona Maria Primeira, pela Somos, livro que está indo muito bem.  Ela proporciona visões muito originais e fundamentadas da História ao mesmo tempo que escreve para o grande público uma narrativa com tratamento quase ficcional , mas sempre no campo da não-ficção. Claro que foi ótimo receber a Mary e o próximo livro dela, Breve história da mulher no Brasil, que vai sair pela Planeta.

Na agência vocês têm um gosto comum para literatura?

Para o agente, o gosto pessoal não importa muito.  Na verdade, nem o agente nem o editor irão longe se se pautarem somente no gosto pessoal. A Anna Luiza Cardoso está na agência há sete anos e nasceu para o mundo do livro, é um talento.  O Miguel, por ser meu filho, conhecia quase por osmose o ambiente e as flutuações do mercado editorial e muito rapidamente pegou a linguagem do meio: como se comunicar com o editor, o que valorizar em um projeto literário. Tudo é muito rápido. Não há reuniões de duas horas para discutir um livro. Muitas vezes é virtual, mandamos um e-mail; “esse livro parece forte, você concorda?”. Então vamos destacar esse livro dentro do catálago da editora. O Miguel orienta o Yago que é o mais novo na casa, ou às vezes a Anna ou eu fazemos. Em geral, entro mais quando é autor brasileiro, uma relação minha, tudo muito mais complicado.  Por exemplo, o “NÃO” do mercado a um livro brasileiro significa um drama de vida ou morte, temos que lidar com o impacto da rejeição sobre o autor. Quando se trata de um autor estrangeiro, ninguém sofre, vida que segue.  O autor brasileiro em geral não sai do seu cangote enquanto não se encontra uma casa para ele. Eu fico ansiosíssima para documentar que já fizemos todo o possível, mas a cobrança é diária. O que acontece de mais desagradável é a expectativa de que resolvamos todos os problemas, desde os contábeis até os psicológicos. Isso não é possível, o agente não é um funcionário do autor, ele ganha por comissão sobre os contratos que conseguiu e/ou negociou, elaborou  e formatou da maneira mais interessante para o cliente. Mas o escritor brasileiro em geral desconhece essa profissionalização e, em um ambiente literário muito precário, tem grande demanda emocional. Na Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha o mundo editorial está muito profissionalizado, há uma compreensão natural e imediata do que faz o agente e do serviço que está sendo contratado. No Brasil as pessoas não têm muita noção. Hoje aqui há cerca de sete agências literárias enquanto nos Estados Unidos são alguns milhares.

A VB&M  só trabalha com grandes editoras?

Trabalhamos e muito também com as pequenas, mas não com as que fazem autopublicação. Trabalhamos com as que são sérias, construindo o nicho delas, buscando se firmar pela edição e comercialização de livros,  não com a venda de serviços editoriais aos autores. Em um mercado livreiro ainda tão incipiente como o nosso, essa profusão de livros autopublicados está intensificando um problema gravíssimo que é o lugar subalterno da literatura brasileira. O problema é mais antigo, não são as pequenas editoras as responsáveis. Pelo menos desde os anos 80 há uma ênfase no Brasil na publicação do livro estrangeiro, o brasileiro entra na rebarba. Desde a época do presidente Fernando Henrique, passou a haver a compra de livros de ficção pelo governos federal e estaduais visando aos acervos de escolas e bibliotecas. Esse movimento, em um primeiro momento muito positivo financeiramente para as editoras,  teve como consequência o fato delas passarem a publicar literatura brasileira para a venda ao governo, e não para o leitor adulto, autônomo, que busca tão somente a fruição literária proprocionada pelo livro. Esse cara passou a não ser atendido porque o critério da venda para o governo é na maioria das vezes o endosso da premiação e da crítica e o endosso da crítica, que nem sempre coincide com a preferência do público. Começou a crescer um fosso entre o que era produzido em literatura e o que as pessoas gostariam de ler; os novos Jorge Amado, Raquel de Queiróz, Érico Veríssimo. Veio então o efeito Tostines, as pessoas dizendo que não leem brasileiros porque não há nada de bom em oferta, exatamente como aconteceu no cinema uma época. Nesse quadro, surge a autopublicação aos milhares.  Basta ver as inscrições dos prêmios hoje em dia, pequenas editoras com centenas de livros inscritos, enquanto uma Record tem 15, a Companhia das Letras tem 20 . Com isso, parece ter havido uma ruptura do sistema editorial como um todo. O editor abriu mão de exercer o seu poder validador da qualidade do livro, que sempre foi seu grande trunfo. A autopublicação agora está mais fácil, mais gente oferece o serviço, mas mesmo há vinte anos era perfeitamente possível para uma pessoa de classe média fazer uma edição de 500, até 1.000, exemplares. O problema é que até o pai e a mãe de um autor autopublicado sabem que aquele livro não representa muito, porque não passou pelo crivo e validação de um editor, um empresário que investiu em salários, insumos, serviços editoriais, para pinçar aquela obra e não outra, em meio a centenas de opções, para publicação. Mesmo inconscientemente, diante de um livro autopublicado, sabem que não houve ali um editor que escolheu aquele livro. Tradicionalmente, você tem um editor que é pago para escolher o livro e isso está embutido no preço da obra. O leitor na livraria sabe disso, ou pressente. Com a autopublicação o valor do livro brasileiro caiu ainda mais. Antes não havia muita coisa porque os editores haviam aberto mão de exercer essa missão de publicar a criação brasileira. Agora, com milhares na internet falando de seus livros, alguns umas porcarias, o leitor de fora do mercado não quer saber daquilo, porque não sabe o que escolher em meio àquela profusão. Aí vai para o livro traduzido que tem o trabalho do editor por trás. Ele sabe que o livro já foi publicado nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, na Itália e em tantos países, tendo portanto uma qualidade específica. Enquanto isso a literatura brasileira fica naquele pântano, naquela massa informe. A não ser que aconteça um milagre como aconteceu com a Martha Batalha; seu livro foi vendido rapidamente para vários países e virou filme antes de ter um editor no Brasil.

A VB&M  contacta autores autopublicados para agenciar?

Já fizemos isso, mas muito pouco. Nós chegamos a fazer a representação de autores que haviam sido autopublicados, mas não realizamos essa busca ativamente. Até pensamos, mas  é muito difícil casar o autor com o agente, sair do seu quadro de atividades para tentar explicar o que faz um agente literário a uma pessoa que nunca pensou nessa opção e não tem noção do que tem a ganhar com ela. Estamos falando de um casamento. Como investimento de tempo, não vale muito a pena. Melhor ficar quieto e, se aparecer alguém extraordinário, chegar a um acordo. Enquanto isso,  é melhor investir o tempo buscando clientes estrangeiros.

Como editora na Record você  descobriu sucessos como a Martha Batalha?

Tenho muito orgulho de ter descoberto o Alberto Mussa. Outro que me chegou e eu  quis fazer e acho que ninguém naquele momento faria é o Francisco Azevedo, que escreveu  O Arroz de Palma, sucesso gigantesco, livro marcado por um boca a boca extraordinário, que já vendeu mais de cem mil exemplares, leitores completamente apaixonados pelo romance. Tenho orgulho do serviço que prestei na Record ao poeta Manoel de Barros e à romancista e cronista Lya Luft. Eles obviamente não eram inéditos quando passei a editá-los, ele com o  Livro sobre nada, ela com Perdas e ganhos, mas cresceram exponencialmente e sistematicamente enquanto os publiquei na Record. Também tive a sorte de descobrir a Luize Valente e o Miguel Sanches Neto, e Miriam Leitão com Saga Brasileira. Essas pessoas todas estão comigo como agente. Em princípio já têm editora, mas o trabalho fundamental do agente é buscar o melhor contrato possível na editora mais adequada a sua literatura, sem falar no esforço de representação internacional.  A representação do autor brasileiro, para ter algum sentido, demanda exclusividade para o Brasil, para tradução e para audiovisual. De outra maneira, é  um trabalho de pura doação por parte do agente..

Acha que a autoajuda tem feito tanto sucesso no Brasil por causa da crise?

A autoajuda é forte no mundo todo, mas no Brasil ganhou mais destaque por causa da crise. A vida moderna deixa as pessoas muito desorientadas, é tudo pulverizado e desestruturado; o ser humano tem um anseio de estrutura e o livro de autoajuda às vezes é um companheiro que auxilia a pessoa a estruturar o dia a dia. Não tenho nada contra a autoajuda que às vezes pode ser muito bem feita. Tem um livro publicado pela Planeta, nem sou eu quem represento, e não foi muito bem aqui, apesar do grande sucesso no exterior, escrito por um almirante da Marinha americana, William McRAven, intitulado Arrume a sua cama. É um livro muito bom que dá essa dica; acordou, a primeira coisa que você faz é arrumar a sua cama. Se tudo der errado no resto do dia, alguma coisa certa você fez que foi arrumar a sua cama. Acredito muito nisso; tenho horror a cama desarrumada, que me passa uma ideia de decadência. Muito boa a ideia do almirante de transformar esse sentimento básico visando a ajudar as pessoas a programar um dia produtivo e manter a sanidade mental.

A VB&M representa autores fora da literatura?

Sim. Acho que todo mundo que está lá é bom; uns com uma literatura mais ousada formalmente e outros com uma literatura que pode ser lida em vários níveis, mas que exige menos repertório do leitor. Mas temos também autoajuda, com o Cesar Souza; a Mirian Goldemberg, antropóloga urbana; a Mirian Leitão e o Sérgio Abranches,que fazem crítica social e política.  Tem o pessoal que faz literatura infanto-juvenil de grande qualidade; a Pepper, que acho uma grande escritora.

E a literatura infantil?

A literatura infantil brasileira é muito boa. Tem muito mais foco no autor brasileiro que os outros segmentos da indústria editorial. Sofreu muito com o fim das aquisições do governo e ao mesmo tempo arrumou a casa. Os planos do governo eram tão grandes que atraíram para o mercado do livro infantil editores que tradicionalmente não eram da área. Esses editores entraram com práticas do mercado de literatura adulta; jogaram o adiantamento dos direitos autorais lá para cima. As editoras de infantis são grandes empresas mas sempre praticaram uma política conservadora em termos financeiros, inclusive porque têm de ter caixa para a feitura do livro, que em geral é caro, com capa dura, em cores, na imensa maioria das vezes com dois autores, um de texto e o outro de ilustração. Tenho impressão que as infantis se beneficiaram  muito das compras do governo, mas sofreram  com a entrada das chamadas trade. Quando em 2015 a Dilma Roussef anunciou que não haveria mais plano de compra de governo e nem iria pagar o que já havia sido feito, houve aquela freada no ônibus. Foi o primeiro momento da crise, o segundo veio com a falência das livrarias. São crises bem específicas que vão bem além da crise do país. Claro que a interrupção nas compras do governo já foi um reflexo da crise do país. Mas não foi sábio da parte das editoras terem passado a contar tanto com aquele canal. Era 25% do mercado, havia editora que faturava 70% com o governo. Claro que ia quebrar. Na epóca as livrarias já praticavam condições inviáveis com a consignação generalizada.  Tanto que estourou e está todo mundo aí sem receber nada Saraiva e  da Cultura; uma dívida impagável, essa das duas cadeias livreiras. Tenho a impressão que está havendo uma movimentação agora muito maior das editoras infantis. Uma nova entrada,  um novo momento de aquisição de livros contando menos com o Estado, buscando outras saídas para chegar às escolas particulares e vender nas livrarias.

As editoras tiveram culpa na crise ao beneficiarem redes como Saraiva e Cultura?

Me parece que sim. Mas não quero falar muito de  políticas comerciais porque não é minha praia. As pessoas se esquecem que o meu cliente é muito restrito, é o editor. Não vendo livro para o público, só muito indiretamente. Vendo os direitos de publicação, a propriedade intelectual para o editor publicar. Nenhum editor vai se convencer a comprar um livro por um post que coloquei no Facebook. Temos Facebook e blog para agradar ao autor brasileiro e um pouco os clientes estrangeiros, mas muito menos. O editor está se lixando se estou no Facebook ou não. Em termos de políticas comercias, posso dizer somente do que acompanhei quando trabalhava na Record; o Sergio Machado, então presidente da empresa, resistiu muito à consignação e às condições  que as livrarias estavam num processo de impor cada vez mais amplamente. Eram condições absurdas e todos confiando cegamente naqueles parceiros que já tinham demonstrado que não mereciam confiança.

Como demonstraram que não mereciam confiança?

Não pagando. As dívidas iam se acumulando, e todos tiveram de entrar na consignação porque “se fulano entrou também tenho de ir. Acho que houve um grau de imprudência muito grande, mas também difícil de criticar porque o editor tem de estar no lugar em que estão seus competidores.  Me lembro de um autor reclamando: “Fui  a Sobral no interior do Ceará e meu livro não estava lá”. Aí o editor tinha de mandar o livro.  O Sergio Machado era contra dar aquelas vantagens à Saraiva, mas tinha que dar porque todo mundo estava dando. Até eu, então diretora-editorial, queria que desse, porque não aguentava acordar de manhã cedo com autor se lamentando: “Não tem livro meu na Saraiva”. Hoje, vendo o processo de fora, pura engenharia de obra feita, tenho ideia do tamanho do erro. Mas no que o primeiro cedeu, todos tiveram de ceder.

As editoras que ignoravam as pequenas livrarias terão agora de se voltar para elas?

Sim, mas elas nunca irão preencher esse espaço. Temos de prestigiar as pequenas livrarias, evidentemente, mas tudo isso representa uma diminuição do negócio. Temos de compreender que o negócio diminuiu. Também porque o livro é incompatível com a vida moderna. Ele exige uma entrega que as pessoas não querem mais dar, além de a leitura ser uma atividade totalmente solitária, enquanto a fruição do cinema, do teatro, da música e das artes plásticas pode ser sempre feita com mais pessoas, com a família, com o companheiro. O livro é o parceiro mais ciumento que se pode ter. Também no sentido da produção do livro; sua seleção para publicação, o tempo que exige; um livro só se conhece lendo, a tradução, a edição. Tudo é típico de um  produto artesanal que se quer que seja rentável como um produto de massa. Fica muito difícil, uma contradição que não sei como se resolve. O editor sempre resolveu da forma do Alfredo Machado: “Publico do sublime ao ridículo”. E o ridículo pagava as contas do sublime. Mas agora com todo esse problema de caixa das  editoras, é triste porque muitas querem publicar só o ridículo, quando o ridículo não tem mais canal de venda. Sem Saraiva, onde o ridículo vai ser colocado? Mas estou achando maravilhosa a proliferação de pequenas editoras engajadas em publicar a melhor literatura que há: Rádio Londres, Carambaia, Instante, Morro Branco, Moinhos, Mundaréu e muitas outras. São editores com uma visão muito clara do que querem fazer e que não dão passos gigantescos, mas conseguem colocar seus livros em pequenas livrarias e vender pelos sites muito bem. No momento que as grandes ficaram meio paradas nós fizemos muitos contratos com essas editoras e elas foram ótimas, corretíssimas. Estavam bem, não tinham contas em aberto com a Saraiva porque nunca haviam conseguido colocar seus livros na Saraiva. Tiveram a sorte de não poder dar as condições que a Saraiva exigia,  descontos altíssimos, consignação.

Os suplemento literários ainda têm alguma importância no mercado?

É uma importância muito menor do que antes, não provoca as vendas que provocavam. As pessoas também têm um pouco de pé atrás com relação a essa crítica literária muito fechada. Mas  só o fato de se conseguir um espaço de destaque ainda é importante. Às vezes até para anunciar o livro de um autor que já fez sucesso antes. É claro que isso é muito menos relevante do que era porque agora tem a internet como canal informativo alternativo.  O escritor está falando com os seus leitores diretamente.  Mas o escritor que gosta mesmo de escrever, o que escreve grandes livros, não tem paciência para ficar tanto tempo na internet. Ou  contrata alguém que faça isso para ele, e aí tem de já estar em um estágio financeiro mais alto, ou não faz. A ficção literária é mais dependente dos canais tradicionais. Já o pessoal jovem, que o editor está procurando publicar,  adora as redes sociais, todos eles.

Você tem tempo de frequentar livrarias?

Nunca fui muito de frequentar a Saraiva, mas fazia um esforço para ir, como profissional, para ver o que estava sendo destacado. Hoje frequento muito a Argumento e a Travessa e muitas vezes não compro livro, vou só tomar café. Faço muitos encontros na Argumento ou na Travessa. Mas às vezes compro alguma coisa, embora não tenha tempo de ler. Só posso ler profissionalmente. Meu sonho de aposentadoria é ficar lendo só o que quero.

Dos livros que leu por lazer quais você destaca?

Eu sempre destaco Vidas secas, livro que li aos 13 anos e me impressionou muito por causa da Baleia, agora fechando a nossa entrevista de volta aos bichos. Essa é a riqueza de um livro; uma criança de 13 anos lê e valoriza determinados aspectos, mas consegue ler. Depois vai reler aos 18 e vai ter uma outra experiência, depois aos 30, outra. Mas tirando os clássicos e falando de livros que estão na livraria, um que me impressionou muito foi O homem que amava os cachorros, do Padura, e não só pelo elemento da paixão pelos cachorros; é um romance histórico do tipo que eu gosto, quando mostra o sentido dos acontecimentos, o significado no momento em foram vividos, para onde se estava indo e, às vezes, o que poderia ter acontecido. O confronto entre o indivíduo e a coletividade.  Na não ficção um dos livros mais interessantes que li, publicado por mim na Civilização Brasileira, é  Justiça, de Michael Sandel,  professor da Escola de Direito de Harvard, sobre as teorias e a ética da justiça. Em toda a sua complexidade, ele escreve de uma maneira muito fácil. O livro é basicamente a transposição para o papel das aulas que ele dava na Law School. É um livro muito importante porque ajuda a pensar.  No Brasil, há pelos menos uns quatro anos, ele está com um selinho da editora dizendo que já vendeu aqui mais de cem mil exemplares.

 

19/12/2019