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A pós-quarentena no interior do estado

 

Livrarias do estado do Rio tiveram diferentes experiências durante a quarentena causada pelo Covid-19; para muitas foi oportunidade de reinvenção e de constatar que a falta de ética no mercado livreiro nacional é pior que a pandemia.


Mobiliário infantil da Castro Alves, em Araruama, com personagens que abordam a diversidade

 

Com projeto de abrir uma livraria de literatura e ciências humanas em Petrópolis, norte do estado, Paulo Vieira, participou, como observador, em 10 de março, de uma reunião da Associação Estadual de Livrarias para ter uma visão do mercado.

Poucos dias depois, ele foi para o isolamento causado pelo Covid-19 e há quatro meses, por recomendação médica, não põe o pé na rua, literalmente, o que planeja fazer no final deste mês, para depois, em outubro, inaugurar a Célula, nome que terá a sua livraria.

Engenheiro por formação, aposentado pela Caixa Econômica Federal, onde trabalhou 20 anos, ele já comprou a loja e as estantes para o negócio e teve sorte de  não ter comprado os livros; “ ou estaria com dívidas e sem ter como vender”.

Na quarentena, Paulo dedica cerca de 12 horas por dia à releitura de clássicos como A Odisseia, de Homero; Eneida , de Virgílio e,” para refrescar”, Saramago. Depois da reunião com livreiros da AEL decidiu que a livraria terá seção infantil, nicho que tem crescido e estava fora do seu radar.

Além da Célula, Petrópolis ganharia outra livraria este ano, projeto bem definido por Anna Valle, que, em 2018, inaugurou a Gallerya Book Shop, de acervo geral, e, em  2019, a infantil Casa da Fábula. Mas a pandemia embaçou  a ideia da terceira loja na cidade.

Anna, a mais nova associada da AEL, se uniu aos livreiros do estado disposta a brigar pela regulação do mercado. Na quarentena a luta foi solitária; “arregaçou as mangas” e retribuiu a lealdade dos clientes “com amor, afeto, saber” e corações carimbados nas embalagens dos livros que entregou pessoalmente.

O que deixa a nova livreira preocupada e assustada, mais que o Covid-19, é a “pandemia ética do mercado”; descontos abusivos das editoras  com vendas diretas aos leitores em detrenimento das livrarias. “Ética é inegociável”, diz ela, que compra nas distribuidoras para prestigiar a cadeia produtiva do livro.

Em Petrópolis, ao contrário do Rio, as lojas de rua abriram antes dos shoppings. A cidade, que no nome  homenageia Dom Pedro II que alí  se refugiava do calor carioca, tem hoje 8 livrarias entre lojas de acervo geral, infantis e religiosas como a Vozes, que voltaram a abrir antes das cariocas.

Já São Gonçalo, maior município do interior do estado, ficou com apenas uma livraria geral, a Ler é Arte, e duas religiosas, depois que a loja da Nobel na cidade fechou definitivamente durante a quarentena.

Niterói, separada da capital pela Baia de Guanabara, e vizinha de São Gonçalo, é, com 13 lojas, a cidade fluminense com mais livrarias, depois do Rio, que tem cerca de 180. Com população  em torno de 500 mil habitantes, é tida como uma cidade universitária; possui seis, entre elas a Universidade Federal Fluminense onde está  a Livraria Icaraí.

Uma das mais antigas da cidade é a  Livraria Panorama, de Adroaldo Garani, no Centro. que completou 50 anos em 15 de março, dois dias  antes de fechar para a quarentena. Ela reabriu na primeira semana de agosto, um pouco mais tarde que as outras porque aproveitou  a pausa para fazer um balanço.

Adroaldo diz que a comemoração do  cinquentenário  foi a Panorama ter sobrevivido a essa crise. Atribui a resistência ao fato  de também vender livros usados, o que lhe permite não depender das editoras, responsáveis, segundo ele, pelas dificuldades do mercado.

A Panorama tem três andares, acervo de 500 mil livros, divididos também em um depósito, e enquanto   fechada teve, segundo Adroaldo, aumento de 40% nas vendas on-line, serviço administrado pela mulher e sócia, Maria do Carmo Garani.

Outra loja niteroiense que reabriu mais  tarde  foi a Blooks, localizada na Reserva Cultural e ainda assim antes das 3 unidades cariocas da rede que permanecem fechadas por estarem em espaços culturais de cinemas que ainda não foram flexibilizados.

A rede católica Paulinas também tem uma unidade em Niterói e, para a Irmã Eloine Corazza, coordenadora das três lojas no estado, alí, e em Madureira , o desempenho na retomada tem sido melhor que o da loja do Centro do Rio onde muitos escritórios continuam em esquema de home office.

Em Campos, norte do estado, a Ao  Livro Verde, livraria mais antiga do Brasil, com 176 anos, fechou por um mês durante a quarentena, mas pôde reabrir com vendas na porta por ter artigos de informática, logo que a Prefeitura definiu lojas desse tipo como essenciais.

O proprietário Ronaldo Sobral, lembra que a  livraria  atravessou várias intempéries históricas inclusive a gripe espanhola de 1918 e tem indicado aos clientes o livro A grande gripe, do norte americano John M Barry para um paralelo com o momento atual.

Também para Ronaldo, ameaça pior que o Covid-19 para o seu negócio  são as editoras  que vendem didáticos dentro das escolas e tiram um mercado  importante para a centenária  livraria que sobreviveu a duas guerras mundiais, mas está combalida pela guerra no mercado editorial brasileiro.

Na região dos Lagos, reduto de cariocas e turistas durante o verão, cidades badaladas como Búzios e Saquarema não têm livrarias. Cabo Frio, maior cidade alí, tem duas; uma loja da Nobel e a Rio Livraria. Empata com a vizinha Araruama. que  há dois anos ganhou  a Big, para dividir o mercado local com a Livraria Castro Alves, que existe há 20 anos  sob o comando do casal  Danielle Rosa Paul e Sérgio dos Santos Silva.

Para Danielle, a pandemia foi uma oportunidade de, através das redes sociais, estreitar o relacionamento com os clientes antigos e ganhar novos em cidades vizinhas e até Niterói. O tratamento diferenciado  e  mais afetivo que incluiu emoticons nas mensagens trocadas com clientes foi fundamental nessa conquista.

“Também houve um estreitamento da relação  através da entrega em casa” diz ela, que garante ter tirado clientes de grandes  sites  do comércio on-line ;“com esse tratamento não tem como eles fecharem com outro lugar”.

Danielle, tem mestrado em Política Editorial, fará doutorado sobre o mercado do livro e acredita que falta, em boa parte dos livreiros, a consciência do papel social que exercem. Diz que o livro não é  um  produto  do mercado sujeito apenas a processos de precificação, mas um bem cultural; " é preciso apoiar a percepção do valor simbólico que ele tem. Isso é uma  questão de ofício e também de política".

A livraria Castro Alves homenageia o poeta baiano no nome por causa do poema A América e o Livro , que em um trecho, reproduzido nas embalagens da livraria, diz “bendito o que semeia livros... livros à mão cheia e manda o povo pensar! O livro caindo n'alma é germe que faz a palma é chuva que faz o mar”.

 


11/08/2020