Mercado cobiçado
Com cerca de 515 mil habitantes, Niterói é, depois do Rio, o segundo município do estado em número de livrarias, agora explorado por grandes redes como a Leitura e por livrarias independentes como a Ponte.
Raffaelle Calandro, o Raffa, e a esposa e sócia na Livraria Ponte, Thaís Eletherio
A cidade, que completou 450 anos em 22 novembro, foi capital do estado do Rio entre 1834 e 1975. Está entre as 10 de maior poder aquisitivo per capita do país e destaca-se pelas boas instituições de ensino, entre escolas e universidades, e um total de 18 livrarias, entre gerais e segmentadas. Nas novidades está a Ponte, inaugurada há pouco mais de um ano e meio no Ingá, bairro vizinho ao Centro, no segundo andar de antiga residência com um café no térreo. “Quando pensamos no nome, queríamos algo conectado à cidade e esse dá ideia de ligação, união de pessoas, encontros.” diz Raffaelle Calandro, o Raffa. Formado em produção editorial pela UFRJ, ele tem mestrado em Ciências Sociais, onde estudou sobre cooperativas. O tema da graduação na faculdade foi bibliotecas comunitárias, dando acesso ao movimento de cooperativas e empresas recuperadas tema do mestrado. “A produção editorial ficou um pouco de lado. Depois, comecei o doutorado na mesma questão de trabalho associativo, mas fiquei desanimado, no meio do governo Bolsonaro, vendo meus colegas todos desempregados e larguei.” A livraria surgiu em função do espaço barato em bairro caro de Niterói: ” Não sei se seria viável nessas lojas de rua da outra quadra com aluguel três vezes maior que o nosso”. Com a Ponte aberta ele fez o curso para livreiros da distribuidora Catavento e uma pós-graduação em marketing editorial na UERJ. “Temos um público corrente, mas vamos expandir as atividades, inclusive para as crianças; a maior parte de nossas vendas é no infantil. Vamos lançar um Clube do Livro infantil, que está formatado e sendo divulgado.” O Clube do Livro para adultos rende frutos: ano passado, entre os três mais vendidos na livraria, os dois primeiros eram lançamentos e o terceiro foi O lugar, da Annie Ernaux, adotado em uma edição do clube pouco antes da premiação dela com o Nobel da Literatura, o que aumentou a procura pela obra. A Ponte também faz lançamentos, mas segundo Raffa, a mudança da Livraria Blooks em meados desse ano para Icaraí afetou a frequência deles, inclusive porque, localizada agora na UFF, a Blooks monopoliza os lançamentos da EdUFF, editora da universidade, que antes fazia com a Ponte. “Geralmente éramos procurados para lançamentos e agora estamos correndo atrás, falando com as editoras que estão por perto. Mas quem já fez lançamento conosco geralmente volta para pelo menos fazer um evento.” Segundo Raffa, a Livraria da Travessa, também em Icaraí, faz a maior parte dos lançamentos na cidade, mas a Ponte por ter mais flexibilidade na agenda fica com os que precisam trocar de data como no caso do livro que não fica pronto para a programação inicial. “Somos uma livraria pequena, a pessoa tem de estar muito inteirada no mundo literário para vir aqui. Até colocamos livros de desenvolvimento pessoal, livro do Padre Marcelo, lançado agora, que não saí. Mas se colocamos o livro do Simas, temos de pedir mais porque está acabando”. Leitor tardio de literatura, Raffa adquiriu gosto na adolescência lendo Luiz Fernando Veríssimo na escola e hoje é fã de Gabriel Garcia Marques, de quem indica Crônica de uma morte anunciada, “para os não iniciados” na obra do autor colombiano. “Minha mãe lia, mas não tive grande incentivo para a leitura através do livro infantil. Tive mais acesso ao gibi. Talvez por isso tenha gibi aqui na Ponte, algo que é parte da livraria. O acesso à leitura se dá de diferentes formas.” As tradicionais Revistas também foram parte da livraria mais antiga de Niterói, a Ideal, fundada pelo italiano Silvestre Mônaco que com 15 anos chegou ao Brasil com a família. O pai, engraxate, o queria na mesma profissão mas ele foi para o Rio, entrou para a contravenção no jogo do bicho, foi preso. Aos vinte e dois anos retornou à Niterói e montou uma cadeira de engraxate onde, ao lado, vendia revistas velhas e folhetos de cordel até fundar a livraria em 1946. Desde 1977 ela está no segundo endereço no Centro, próxima a Rodoviária, e é gerenciada pelo filho Carlos Mônaco. Essa região do Centro de Niterói está decadente, com pouco movimento e perigosa à noite. Carlos, de 81 anos, trabalha de segunda à sexta e encerra o expediente às 16 horas: “Muitas das lojas por aqui estão fechadas, estão para alugar e não alugam. Antes tinha até de pagar luvas.” A Ideal foi uma das livrarias mais importantes de Niterói. Uma marca da sua relevância está à frente da loja onde, por iniciativa da Prefeitura, foi feita, anos atrás, com pedras portuguesas no chão a inscrição em que se lê: “ Calçadão da Cultura”. Carlos relembra os encontros promovidos aos sábados: “Além de escritores e figuras importantes das letras de Niterói tivemos presenças variadas como a do cantor Nélson Gonçalves, do ator Grande Otelo e da Miss Brasil Therezinha Morango.” A Ideal, que começou com novos e usados hoje tem predominância de usados, fora os lançamentos de autores da região deixados em consignação. A maior parte da venda é pela internet, serviço a cargo do neto do fundador, Carlos Cesar Mônaco. Na loja, o pai dele segue a dica dada por Silvestre Mônaco quando começou a trabalhar com livros: “ A melhor maneira de atender uma pessoa numa livraria é ignorá-la, o cliente quer folhear livros sem que ninguém interfira nesse processo”. Do outro lado do Centro está a Panorama Romanceiro, segunda livraria mais antiga de Niterói fundada em 1970 por Adroaldo Peixoto Garani. Em 1976 ele inaugurou também a Travessia, e em 1978 a Romanceiro, nome inspirado no livro Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, todas no Centro. Com o falecimento da irmã Elisa Peixoto Garani, que gerenciava a Romanceiro, a loja foi fechada e Adroaldo adicionou, em homenagem a ela, o nome Romanceiro à livraria Panorama, localizada em ponto movimentado próximo à estação das Barcas que vão para o Rio. Na entrada da livraria um banner diz “ as investidas para esse ponto tradicional se tornar uma farmácia, igreja, ou até loja de 1,99 são frequentes, mas com seu apoio e a equipe dedicada que aqui trabalha, faremos de tudo para resistir.” A equipe é formada por quatro funcionários e seis estagiários da UFF, local em que Adroaldo iniciou a carreira de livreiro aos 19 anos com uma banca de livros, “de muito sucesso” dentro da universidade onde estudou letras e direito. Quando o livro didático ainda era o forte das livrarias a equipe da Panorama aumentava na volta às aulas: “houve épocas em que tínhamos umas 25 moças encapando livros escolares. Mães da classe média alta que não queriam ter esse trabalho adoravam o serviço. O que comprávamos de plástico era uma enormidade.” Segundo Adroaldo, a Travessia foi fechada depois de 10 anos, por causa do aumento do aluguel, mas continua com o CNPJ ativo. Ele fez carreira paralela na política como deputado estadual e federal pelo PDT, Secretário Estadual de Transportes e Presidente da Imprensa Oficial do Estado, entre outras atividades. A energia de político é usada para protestar contra a Associação Nacional de Livrarias que, segundo ele, já deveria ter providenciado um portal na internet ao estilo da Estante Virtual, site que reúne sebos de todo o país, para também agregar as livrarias que vendem novos. Aos 72 anos diz: “tudo ligado a livraria e a política brasileira eu me lembro”. Enfatiza que na história das livrarias de Niterói quatro nomes merecem destaque: o dele, o do Carlos da Livraria Ideal, o do Antonio, da Gutemberg e do Aníbal, da Diálogo. Anibal Bragança, falecido em 2021, teve além da Diálogo, que ainda funciona no Centro como loja de usados, a Passárgada, fundada em 1966, que também editou livros com firme oposição ao regime militar. Depois, no ambiente acadêmico, se dedicou ao estudo do livro e do mercado editorial. Entre as obras dele estão: Livraria Ideal: do cordel à bibliofilia - EdUFF ; Francisco Alves, o Rei do Livro – EdUSP; e Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros – Editora da UNESP. Pouco antes de falecer Aníbal foi editor da Editora da UFF e dizia que das funções no mercado a que o deixou plenamente realizado foi a de livreiro. O português Antonio Gomes Eduardo, da Livraria Gutemberg, membro do quarteto que, segundo Adroaldo, reinou no mercado livreiro niteroiense continua em livraria mas dando apoio ao filho Rodolfo Lacerda. A Gutemberg , fundada em 1977 , funcionou por 40 anos em Icaraí, tida por muitos como a melhor livraria da cidade, afirma a livreira Margarete Cardoso, ex-Kosmos, do Rio, maior especialista em livros raros do país, residente em Niterói. Sucedendo a Gutemberg, o filho Rodolfo inaugurou em 2017, no mesmo bairro, a Schofer, menor, dentro de uma galeria, mas ligada à livraria do pai a partir do nome: Schofer, aportuguesamento de Schoeffer, editor e tipógrafo alemão que concluiu a Bíblia de Gutemberg, após o falecimento dele. A relação também permanece com a presença diária de Antonio na livraria por algumas horas. Leitor de dois livros por semana ele dá dicas literárias aos clientes e vai :”incentivar e ensinar as novas gerações a vender livros”. Também tem presença certa nos saraus de poesia da livraria, às sextas, declamando Fernando Pessoa. Antonio começou no ramo em 1967, quando fundou a livraria A Casa da Filosofia. Abriu uma filial da Gutemberg que faliu em São Gonçalo, município contíguo a Niterói, com o dobro da população mas que depois do fechamento da Saraiva em um shopping está sem livrarias. Foi ele quem comprou a livraria Diálogo de Anibal Bragança e depois ao precisar fechá-la e sem verba para indenizar os funcionários a deu de presente a eles: “ que adoraram e estão conseguindo levá-la adiante”.
As cariocas A esse time de livreiros niteroienses, se juntou em 2016, a carioca Elisa Ventura, da Blooks. Seguindo a estratégia da rede de se instalar em locais com cinemas ela foi para a Reserva Cultural, em São Domingos, ao lado do Centro. “Mas com a pandemia a Blooks foi a que mais sofreu devido à demora do retorno do público aos cinemas e consequentemente aos locais da livraria. Tivemos de esperar cerca de dois anos”, lembra Elisa. Ao vencer um edital a unidade niteroiense da rede foi ,em junho, para a reitoria da universidade da UFF na Praia de Icaraí, onde, dentro da proposta original há teatro, cinema e galeria de arte. Alí, são promovidos vários eventos, recentemente foi inaugurado o Café da Livraria e há o Clube de Leitura Filosofia à beira mar. “Fez uma grande diferença porque a Reserva, onde estávamos não é local de passagem”, diz Elisa. Ela destaca que o niteroiense é muito leitor e prestigia o comércio local numa relação de afeto com as livrarias, e opta menos pela compra on-line. Garante que apesar das outras livrarias em Icaraí há público para todo mundo. “O problema são as editoras que vendem com desconto e transformam as livrarias em um showroom”. Elisa reclama também das editoras não lançarem livros em Niterói; “ ainda não pegaram a visão de que Niterói é uma outra cidade, diferente do Rio de Janeiro.” Com isso os lançamentos na Blooks niteroiense ficam restritos a autores locais e publicações da EdUff. A Livraria da Travessa é outra rede carioca do outro lado da baia, com uma unidade em Niterói e cinco no Rio. Rui Campos fundou a primeira em 1986 , na Travessa do Ouvidor, no Centro do Rio, que deu origem ao nome, Ele não vê diferença radical entre as lojas das duas cidades afora o perfil universitário do público niteroiense: “grande número de adolescentes que enche a livraria nos fins de semana e dá a ideia de muita diversão.” “Há semelhança com o público da Travessa de Botafogo, no Rio”, diz ele. Mas sem os turistas e sem espaço para as vanguardas artísticas pois Rui vê um conservadorismo, não político, mas de costumes na cidade. A loja, em Icaraí, bairro nobre na orla , foi inaugurada durante a pandemia, em 2020, e recentemente promove eventos com regularidade, mas não ainda no ritmo das de Botafogo e Ipanema e tem um café. Rui espera que a Blooks, agora no mesmo bairro, atraia mais lançamentos para a região. “Nossa preocupação não é o concorrente mas o cliente”, diz ele, “um livro leva a outro e esse leitor passa então a ser um comprador.”
Outras redes Segmentadas ou não as livrarias das grandes redes não estão fora desse mercado generoso e, foi em Niterói, que a rede católica de livrarias Paulinas inaugurou em 1969 a segunda loja no estado do Rio, depois da capital. Localizada em área movimentada no Centro, na mesma região da Panorama Romanceiro, a loja niteroiense veio bem antes da terceira loja da rede no estado inaugurada em 2006 em Madureira, Zona Norte do Rio. Ela segue o padrão das unidades cariocas: destaque para a seção infantojuvenil e promoção de cursos, debates e lançamentos. Disputando o público cristão, não longe das Paulinas, está a mais nova loja da rede CPAD – Casa Publicadora das Assembléias de Deus, fundada em 2019, com livros de várias correntes evangélicas, artigos religiosos em geral e objetos para presente. A última loja da Saraiva a resistir no estado, depois do fechamento das dez unidades na capital foi a do Shopping Plaza Niterói mostrando o vigor da região. O encerramento das atividades foi no começo deste ano, mas como aconteceu com outras unidades fechadas pela Saraiva o espaço foi ocupado pela Leitura, maior rede do país, com 110 lojas. A loja em Niterói foi inaugurada no dia 24 de novembro e, segundo o sócio Bernardo Ribeiro Teles, segue o padrão das outras da rede com um mix de produtos que além de livros tem papelaria e presentes. Bernardo diz que não houve uma curadoria especial para atender o público niteroiense que “ nesse shopping , é bem misturado”. Depois do Barra Shopping e do Shopping Leblon, no Rio, o Plaza Shopping, disputa com o Rio Sul, também no Rio, o terceiro lugar entre os mais concorridos do estado, segundo ele. Alí também serão promovidos eventos, como o primeiro da loja: o lançamento, no último dia 6, do novo livro do Padre Marcelo Rossi Amorização – A cura do coração, que, se não teve procura pelos clientes da livraria Ponte atraiu grande público para a Leitura e mostra que há espaço para todos segmentos do mercado na chamada “cidade sorriso”.
Kleber Oliveira 13/12/2023
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