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Café e livros

 

A sinergia entre esses aditivos para o cérebro faz aumentar o número de lojas que são  união de dois tradicionais locais urbanos de encontro: cafeterias e livrarias.

 

O barista Rodrigo Souza em aula sobre café na Livraria Funambule


Um exemplo da combinação  é a Livraria Funambule, inaugurada em 2024, em Petrópolis, região serrana do estado do Rio, em casa ajardinada a dois quilômetros do centro.

Depois de uma visita à Paris, o escritor Heberti  Lino quis montar em Petrópolis uma cafeteria  igual as que viu na capital francesa, frequentadas como local de trabalho por escritores e compositores, num cowork criativo.

Para o projeto, fez curso de barista em São Paulo, mas a pandemia do Covid  o obrigou a adiar a ideia e, invés de cafeteria,  ele inaugurou, em 2020, a livraria Funambule on-line. Este ano, em fevereiro, o sonho da cafeteria se concretizou, e junto, a livraria física.

“Livraria é um negócio arriscado mas senti necessidade de criar aqui o ambiente que vi em Paris” diz ele, falando das cafeterias e da livraria  parisiense Shakeaspeare  and Company onde escritores se reúnem para ler e discutir textos.

“Nada contra as livrarias que sejam apenas locais de livros, mas queria algo diferente, que as pessoas falassem um pouco delas através dos livros.”

Em maio a Funambule promoveu seu primeiro grupo de leitura em torno de Contos Escolhidos, de Ivan Bunin, prêmio Nobel da Literatura da Rússia.

“Consegui o livro num valor acessível, as pessoas leram e, embora seja um autor de há  quase cem anos, elas trouxeram experiências de vida associadas ao livro. Era essa troca que eu buscava, não um debate acadêmico.”

Em maio a Funambule promoveu, com o barista Rodrigo Souza,  o primeiro curso para quem quer se especializar no preparo  da tradicional bebida brasileira e a ideia é que os cursos ocorram mensalmente. Heberti diz que, na sua livraria o cliente pode levar o livro para a mesa mas se derramar café  tem de adquirir a obra.

A tendência de livrarias com cafeterias ganhou força na década de 90  em redes como a Barnes & Noble, nos Estados Unidos,  Waterstone, na Inglaterra e FNAC, na França.

No Brasil, Saraiva e Cultura tinham lojas com café e a Travessa, bem sucedida rede carioca, que em 2025 abre nova loja em Porto Alegre, também oferece o serviço em quase todas unidades.

Segundo Rui Campos, fundador da rede, a unidade gaúcha não terá café porque, no mesmo shopping, há em frente uma loja que vende a bebida. Mesmo caso de duas outras  unidades da Travessa em shoppings paulistas.

Mas a loja de Ribeirão Preto, interior de São Paulo,  também em shopping ganha um café em julho, dez anos depois de inaugurada em 2014.

Segundo Rui, o sonho de ter um café na Livraria da Travessa de Lisboa, Portugal, com anexação do restaurante ao lado ainda não pode ser concretizado.

Ele diz que na Europa livrarias com cafés não são tradição: "Em Paris existem poucas". A Bertrand em Lisboa, mais antiga do mundo, fundada em 1732, só recentemente instalou um café.

O mesmo ocorreu com a Shakeaspeare & Company, em Paris, que, fundada em 1919, também, só recentemente, abriu um café que, segundo Heberti Lino, funciona em loja anexa à livraria.

No Rio, a Leonardo da Vinci,  no Centro, mais antiga livraria independente do Brasil, com 72 anos, resistiu à inovação até ser vendida em 2016 para o livreiro Daniel Louzada.

“Minha mãe achava inútil cafeteria, no máximo havia uma garrafa térmica com café fresco e, durante muito tempo, uma garrafa de rum, grátis”, diz Milena Duchiade, ex-livreira, filha da fundadora da Da Vinci, Vanna Piraccini.

Marcus Gasparian, da Argumento, no Leblon, Zona Sul do Rio, questionava a ausência do serviço na Da Vinci, livraria que, segundo ele, o inspirou, como disse em  entrevista à AEL:

“Concordo que o principal em uma livraria é o acervo. Mas acho que não podemos endurecer demais. Temos que pensar no conforto do público. O espaço do café contribui.”

Para Marcus, “a experiência de entrar na Leonardo da Vinci com todos aqueles livros e pessoas é algo que atrai. Mas se aquela experiência puder ser multiplicada e você puder ficar mais tempo, com espaço para sentar, um café, melhor ainda.”

Hoje, a Da Vinci tem um movimentado café no meio da loja que funciona como restaurante na hora do almoço e é também local de trabalho para quem transita pelo Centro.

Junto com a Travessa, que inaugurou seu primeiro café  em 1996 na unidade de Ipanema, a Argumento foi pioneira no Rio na junção livraria e cafeteria com a inauguração, no mesmo ano, do Café Severino na loja do Leblon.

Nele, o diferencial é o Café do Próximo, tradição de cafeterias europeias, em que o cliente num gesto de gentileza deixa pago, anonimamente, o café para um cliente que vier depois.

Segundo Laura Gasparian, livreira irmã de Marcus,  há um quadro negro no salão onde ficam registrados quantos cafés do próximo estão disponíveis. No Severino o cliente só pode sentar com livros já adquiridos para  evitar danos ao acervo da casa.

“Amo café, não pelo café em sí, mas pelo ritual de encontrar as pessoas” diz Elisa Ventura, da Blooks, para quem esse serviço, dentro das livrarias, agrega muito.

A nova unidade da rede, aberta em 2023, em Icaraí, Niterói, é a primeira com um café dentro da loja que, devido ao sucesso, passou a servir almoço.

A primeira Blooks, fundada em 2008, na Praia de Botafogo, Zona Sul do Rio, em espaço de cinemas agora gerenciado pelo grupo CineSystem, há um café do lado da loja.

“Mas é diferente porque as pessoas não estão dentro da livraria, olhando para os livros”, diz Elisa, que estuda a possibilidade de implementar algo do tipo dentro da loja.

O café, nativo da Etiópia, chegou ao Brasil em 1727  com Francisco de Melo Palheta, oficial português, através de mudas da Guiana Francesa plantadas no Pará e hoje o país é o maior produtor e exportador do mundo.

A literatura sobre ele, em livros, vai do cultivo ao ofício de barista. Há clássicos sobre sua importância econômica e social no país, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda.

Na ficção a cultura cafeeira contextua a narrativa de O tronco do ipê, de José de Alencar; São Bernardo, de Graciliano Ramos e Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, entre outros.

Em meados do século XX,  com o aprimoramento da indústria gráfica, um novo gênero se populariza, não pelo conteúdo mas pela forma: os coffee table books:

São de grande formato, capa dura, muitas imagens, pouco texto, a serem dispostos na mesa de centro da sala de estar, onde é servido o café. Os temas vão da cultura pop à religião.

E até a literatura espiritual já se associou a essa bebida energética como o livro do pastor evangélico Júnior Rostiola, o mais vendido no país em 2023 e ainda em primeiro nas listas de bestsellers: Café com Deus Pai.

 

 

Kleber Oliveira

3/06/2024