A lei e o livro
Prazo limitado para que o livro novo tenha mesmo preço em qualquer canal de venda irá proteger as livrarias, a bibliodiversidade e a cultura nacional, graças ao projeto de lei que tramita no Congresso.
Lançamentos são o filé nas livrarias e a isca oferecida a preços baixos por sites como Amazon e Americanas para atrair clientes que pagarão mais caro por outros produtos. Durante um ano, depois do lançamento, livros novos, que são 5% do acervo de uma livraria generalista, serão vendidos com no máximo 10% de desconto, de acordo com o projeto. “Se o Brasil não aprovar essa lei nós lamentavelmente vamos ver as livrarias se enfraquecerem e o mercado livreiro e editorial também. É fundamental que ela seja aprovada”, diz o presidente da Associação Nacional de Livrarias, Alexandre Martins Fontes. “O trabalho que temos feito é sensibilizar os políticos para essa luta”, diz ele, “tenho conseguido conversar com algumas pessoas importantes que estão se predispondo a ajudar na aprovação. Fico feliz de ver que muita gente entende isso imediatamente.” Batizada de Lei Cortez, homenagem ao livreiro e editor José Xavier Cortez, falecido em 2021, o projeto vai ser relatado pela senadora Teresa Leitão na Comissão de Educação do Senado, analisado pelo plenário e depois seguir para avaliação da Câmara dos Deputados. "A Lei Cortez pretende garantir a igualdade de condições ao comerciante, incentiva a ampliação do mercado livreiro nacional e termina também por incrementar a oferta de livros. É um incentivo para a sobrevivência e manutenção das pequenas livrarias e do mercado editorial nacional", disse a senadora. Livrarias têm papel social importante, ausente nos sites da internet, como mostrou a comoção pelo fechamento em julho, no Rio, da Malasartes, primeira livraria infantil do país. Entre os muitos comentários de pesar estavam os da artista plástica Beatriz Milhazes, do ator Mateus Solano e da escritora Ana Maria Machado, uma das fundadoras da loja em 1979. Gênero em expansão no mercado, a literatura infantil demanda visita à livraria devido à importância das ilustrações que pela internet, em geral, não podem ser acessadas. Mesmo nesse caso, muitas livrarias não conseguem vender: “Quando vejo alguém tirar foto já sei que não vou vender; pegou a referência para comprar na Amazon e às vezes a diferença é de mais de 50%”, diz Raffaelle Calandro, que inaugurou a Livraria Ponte em 2021, em Niterói, estado do Rio, onde, próxima à escolas, os infantis são o forte. Formado em produção editoral ele entrou nesse mercado minado ciente que para sobreviver a Ponte teria de buscar outros caminhos além do atendimento na loja: “Não é só a política de rasgar preços da Amazon, mas há o envolvimento de certas editoras. Isso inviabiliza o negócio dos pequenos.“ Segundo Rafaelle, a Ponte não é afetada pela venda das editoras nos sites, mas ele reclama das feiras de descontos organizadas por elas: “Fica muito difícil um negócio em que o próprio fornecedor vai canibalizando o varejista”. A Feira da UNESP – Universidade do Estado de São Paulo, com edição anual na capital paulista tem, desde a pandemia, uma versão on-line onde a maior parte dos descontos das editoras está na faixa de 50%, o que prejudicou as vendas da livraria niteroiense. “Com esse nível de concorrência você tem de oferecer ao público uma série de coisas além do livro”, diz Rafaelle, “temos uma presença no bairro com eventos, lançamentos, clubes do livro; quando vamos às escolas levamos um autor, uma contação de histórias, envolve o público e dá retorno.” No Rio, a Casa 11, inaugurada em 2023, segue o caminho da Ponte: muitos eventos além dos lançamentos e debates: leituras teatrais, oficina de desenho e montagem de biblioteca nos fins de semana com empréstimo de livros, entre outros. A livraria promoveu no último sábado de junho, com outros livreiros do bairro a 1ª Feira Literária de Laranjeiras que segundo a sócia, Ana Mallet, foi um sucesso e reuniu cerca de duas mil e quinhentas pessoas. Além de livros, houve comida, bebida, performance, debates com nomes como o premiado escritor indígena Daniel Munduruku, show com a cantora Leila Pinheiro e um acordo entre os livreiros para que os livros fossem vendidos sem desconto. A Alemanha foi o primeiro país, em 1888, a por em prática um preço fixo para o livro através de acordo amigável entre os agentes do mercado. Neste sentido a ANL lançou em 2016 o Manual de Boas Práticas do Setor Livreiro, que não teve adesão de todas as entidades do mercado. No ítem 5 o Manual prega contra “a concorrência desleal ou predatória definida como a manipulação do preço de venda ao consumidor, operando com prejuízo ou deixando de ter lucro ou mesmo aplicando preços incompatíveis com a mínima margem para a viabilização do negócio visando aumentar sua participação no mercado.” Hoje há consenso entre as entidades sobre a Lei Cortez. Para Dante Cid, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros ela é fundamental para o ecossistema do livro: “o livro é o principal pilar de transmissão e preservação da cultura e educação de um país e precisa de uma atenção diferente contra a guerra comercial de grandes plataformas”. Dante diz que a iniciativa está longe de ser um controle de preços: “Pelo contrário, esse tipo de legislação em outros países provou que a tendência é de redução de preços”. Lizandra Magon, presidente da Liga Brasileira de Editoras, diz que a entidade defende a lei desde que a discussão teve início no Brasil: “Em princípio, as próprias livrarias eram resistentes à ideia. Mas a experiência francesa tinha dado resultados muito importantes para o mercado editorial e livreiro como um todo”. Em 2006 a LIBRE lançou Proteger o livro - desafios culturais, econômicos e políticos do preço fixo, livro de Markus Gerlach, pesquisador francês do mercado editorial que relata a progressiva implantação da lei em países europeus. No Brasil, a Associação Estadual de Livrarias RJ foi, em 1999, a primeira entidade a reivindicar a lei com a entrega de um abaixo assinado pelos então livreiros Milena Duchiade, da Leonardo da Vinci, no Rio, e Ítalo Novelo da rede nacional Sodiler, no 30º Congresso de Editores e Livreiros, em Florianópolis, SC. “Tomei conhecimento dessa lei em 1996 quando fui fazer um estágio na França para formação de livreiros da America Latina, promovido pelo Sindicato Nacional de Livrarias de lá. Uma das palestras foi com o histórico da Lei Lang.” diz Milena. Batizada em homenagem ao ministro da cultura na época, Jaques Lang, a lei francesa, de 1981, quando não havia internet, era uma reação à política de descontos de redes como a FNAC, e foi atualizada para impedir que a Amazon drible o preço fixo com isenção de frete para seus livros. No Brasil, segundo Milena, um dos motivos para reivindicar a lei foi o lançamento em 1999 do livro Harry Potter que vinha sem preço de capa, o que possibilitou às grandes redes melhores preços em grandes compras e venda abaixo do valor comum. Segundo ela, “naquela época todo mundo era contra a lei”. Obtido o consenso no mercado, a campanha se volta para a classe política e a população. “Nos países em que a lei existe a população inteira lhe dá apoio”, diz Alexandre Martins Fontes, “ela não é questionada na Argentina, na França, em Portugal ou no México”. O novo presidente da Argentina, Javier Millei quis acabar com a versão que existe há 23 anos no país, a Lei de Defesa da Atividade Livreira. Voltou atrás com a reação da população. ”A lei está lá e tenho muita inveja dos argentinos por terem uma situação que é tudo o que o Brasil necessita”, diz Alexandre. Aqui, a autoria do projeto foi da então senadora Fátima Bezerra, em 2015, e ele tramitou pelo Congresso até ser arquivado no final do governo Bolsonaro e reaberto em 2023 por iniciativa da senadora Teresa Leitão. Desde que foi proposta a lei não mobilizou a população: no site do Senado onde há votação sobre o tema houve, nesses nove anos, cerca de 7 mil votos: 2860 a favor e 4119 contra. No TikTok plataforma de maior influência no mercado editorial a discussão ainda não chegou; há dois vídeos sobre o tema com poucas visualizações, enquanto no Youtube a repercussão é maior e há campanha contra ela principalmente dos jovens leitores de livros em quadrinhos. Na imprensa o posicionamento contrário à lei em artigos assinados por jornalistas de renome como Élio Gaspari, de O Globo, e Luciano Trigo, da Gazeta do Povo, causou indignação no meio editorial por serem eles também escritores. “A posição desses dois jornalistas nasce de uma prepotência, de uma falta de informação, e falta de diálogo. Lamento que profissionais dessa importância não tenham tido a capacidade de ligar para alguns livreiros e editores, por que essa não é uma causa das livrarias mas da indústria editorial como um todo” diz Alexandre Martins Fontes. “ Precisamos fazer uma campanha sistemática e forte não para convencer as pessoas da importância da lei, mas da importância das livrarias nas ruas das nossas cidades“ prossegue, ”é difícil encontrar alguém que se posicione contra as livrarias.” Alexandre anuncia para breve uma campanha da ANL em prol das livrarias produzida por uma agência de publicidade. “Esta é uma luta do SNEL, da CBL da indústria como um todo. Mas é acima de tudo uma luta da ANL e estamos arregaçando as mangas para que um dia possamos comemorar a aprovação”. A Lei Cortez será um dos principais temas da 32ª Convenção Nacional de Livrarias, batizada de O valor do livro, nos dias 4 e 5 de setembro, em São Paulo, com a presença da senadora Teresa Leitão em um debate. “Estou muito feliz com a programação”, disse o presidente da ANL, “será uma convenção para encarar com profundidade os principais desafios do mercado. Vamos falar sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura, a Lei Castilho, relação entre editores e livreiros, setor editorial, imprensa e sobre o custo do livro.” Além de nomes importantes do mercado haverá debates com dois músicos brasileiros, também escritores: Fernanda Takai, do Pato Fu, e Nando Reis, ex-Titãs. As inscrições para a 32ª Convenção Nacional de Livrarias são no site da ANL.
Kleber Oliveira 21/08/2024 |