Conversa sobre o livro
Livrarias voltaram a ser, através dos clubes do livro, locais de encontro, reflexão e troca cultural depois do distanciamento social imposto pela pandemia e como resposta à crescente virtualização das relações pessoais pelo uso intensivo da internet.
Clube do Livro na Casa 11 Sebo e Livraria em Laranjeiras
A discussão de textos em grupo remonta à antiquidade com encontros em torno de obras religiosas e filosóficas. No século XIX, os salões literários, na França, Inglaterra e Estados Unidos, ampliaram os temas. Porém foi no final do século XX com o crescimento das livrarias, que a regularidade e participação aberta e gratuita deram origem aos clubes do livro. Ficar com o problema, obra da norte-americana Donna Haraway de 2016, lançada no Brasil em 2023 pela N-1 Edições vem sendo discutida, a cada quinze dias, na Casa 11, livraria carioca em Laranjeiras, inaugurada em 2023. Zoóloga e filósofa, Donna Haraway é teórica do ecofeminismo e defende novas formas de relação entre pessoas, natureza e tecnologias para conviver com os desafios do mundo hoje, como mudanças climáticas, sem esperar por um futuro idealizado. “Um conceito fundamental do livro é o de criar novos parentes e a Casa 11 para mim é uma experiência de novos parentescos” diz Jucenei Batista, uma das mais ativas na discussão no último dia 12 sobre o primeiro capítulo do livro: Jogos de figuras de barbante com espécies companheiras. Jucenei considera o tema do livro complexo, mas diz que lhe deu a oportunidade de abordar questões que não estão presentes nas suas interações diárias: “meus amigos não querem falar sobre isso. Ouço, estudo, mas não tenho parceiros de conversa sobre esses assuntos. É horrível.” O debate continua no grupo de Whatsapp, com o nome do livro. Há comentários e vídeos inclusive com outros autores ligados ao tema. A complexidade da obra fez com que, após a segunda reunião, nesta terça-feira, uma mensagem no grupo informasse que, a partir de agora, haverá duas edições do clube para cada capítulo. Outras novas livrarias abrem prontas para investir na reunião de pessoas. Uma é a Funambule, inaugurada este ano em Petrópolis, região serrana do estado do Rio: ” Senti a necessidade de criar aqui o ambiente que vi em Paris” diz o livreiro Heberti Nino, citando a livraria Shakespeare and Company na capital francesa onde escritores se reúnem para ler e discutir textos. “Queria que as pessoas falassem um pouco delas através dos livros”, diz ele, que inaugurou em maio o que, na Funambule, é chamado de grupo de leitura. A primeira edição foi em torno de Contos Escolhidos, da Amarilys Editora, com textos de Ivan Bunin, primeiro russo a ganhar o prêmio Nobel de Literatura em 1933. “As pessoas leram e, embora seja um autor de quase cem anos, elas trouxeram experiências de vida associadas ao livro. Era essa troca que buscava, não um debate acadêmico”, diz Heberti. Desde então, se falou, na Funambule, de clássicos como Madame Bovary, de Gustave Flaubert e, no próximo dia 8, haverá o primeiro encontro do Grupo de Literatura Grega Clássica que, por sete meses irá conversar sobre a Ilíada, de Homero, com foco, a cada mês, em 4 dos 24 cantos do poema épico. Em Niterói, a Livraria da Ponte, inaugurada em 2022, no bairro do Ingá, abriga seis clubes do livro. Dois são de grupos visitantes que usam o espaço para discutir obras escolhidas por eles. Os outros quatro são organizados pela livraria, com o nome Clube de Leitura; o infantil, o de poesia, o de romances curtos e o de não ficção. O de não ficção teve a primeira edição este mês com Tudo sobre o amor – Editora Elefante; obra de 1999 da teórica feminista e antirracista norte-americana Bell Hooks. O de romances curtos é realizado desde a abertura da livraria e já discutiu cerca de 30 obras. É, segundo o livreiro Raffaelle Calandro, o que atrai mais público na última quinta-feira do mês. Nele, os livros têm no máximo 150 páginas e são escolhidos por votação entre dois títulos de uma mesma editora que este mês foi a Dublinense com o romance de estreia do escritor niteroiense Sergio Tavares, lançado em 2023, Todos estaremos bem, com personagens que, nas últimas quatro décadas da história do país, vivem em cenários como o regime militar e a epidemia da AIDS. Em São João do Meriti, município do Grande Rio, a Córdula Livraria, inaugurada no Centro, em 2023, trilha o caminho de agregar leitores. No projeto Academia na Livraria, em parceria com a Academia de Letras e Artes de São João de Meriti, divulga a produção de autores da região em encontros no último sábado do mês onde são lidos textos escritos por eles. O formato do encontro é de sarau literário, mas o livreiro Diogo Santana tem o projeto de três clubes do livro para o ano que vem: o de literatura nacional, literatura estrangeira e ciências humanas. Este ano a Córdula já abrigou o grupo itinerante Leitoras Livres, 12 mulheres que se reúnem em locais diversos para discutir a produção literária feminina. Livrarias tradicionais também aderiram, recentemente, aos clubes do livro como a Panorama Romanceiro, uma das mais antigas de Niterói, com 54 anos, que promove as reuniões desde agosto, no último sábado de cada mês. Segundo o livreiro Adroaldo Garani, a repercussão foi tão boa que gerou pedidos para que o evento se torne semanal, o que, segundo ele é inviável. A livraria teve tradição em noites e tardes de autógrafos que levaram grandes nomes da literatura à Niterói, mas a ideia do Clube do Livro, de 10h ao meio dia, veio dos estagiários da Universidade Federal Fluminense que, em número de seis, trabalham na livraria. “Tem dia que às três horas da tarde o pessoal ainda está debatendo. ”, diz Adroaldo, participante de todos os encontros. Até agora, o clube só discutiu clássicos; começou com A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, teve A Metamorfose, de Franz Kafka, O Retrado de Dorian Gray, de Oscar Wilde e neste sábado tem Capitães de Areia de Jorge Amado. Os títulos ficam a critério dos participantes que escolhem através de votação. Segundo Adroaldo, o evento tem um custo; os estagiários ganham hora extra no sábado e é servido um lanche aos participantes: “Mas vemos isso como um investimento da livraria para contribuir com o aumento dos índices de leitura. Tem uma menina de 12 anos que já foi em dois sábados, levada pela tia.” No Rio, outra livraria tradicional, a Argumento, fundada no Leblon em 1978, também aderiu recentemente, em 2023, ao Clube do Livro. Segundo a livreira Laura Gasparian, “as pessoas começaram a querer sair mais de casa e se socializar depois da pandemia.” Nele, os clássicos estão de fora; são discutidas obras de ficção, de autores novos. A próxima edição, em janeiro, será com o premiado romance A louca da casa, da espanhola Rosa Montero, de 2003, editora Todavia, mistura de biografias e autobiografia em torno do ofício de escrever. A Livraria da Travessa promove Clubes do Livro nas unidades do Leblon, Barra e Icaraí, suspensos em dezembro devido ao movimento no período natalino. O mais antigo é o clube da Travessa do Leblon, com 14 anos, mediado pelo livreiro Olavo Wyszominski. Segundo ele, as reuniões são melhores quando não há unanimidade sobre a qualidade da obra o que acalora as discussões. Seu papel de mediador inclui pedir silêncio quando os ânimos estão exaltados. Os encontros são na terceira quarta feira do mês e os títulos mudam mensalmente. Nesse clube já se discutiu de quadrinhos à política, mas o destaque tem sido os romances. O título para janeiro é Estrela da Manhã, com 656 páginas, de 2020, lançado aqui este ano pela Companhia da Letras. O premiado autor, o norueguês Kal Knausgaard, é, segundo Olavo, “um Proust contemporâneo, mas sem o hermetismo do escritor francês”. Na Livraria Leitura há encontros pontuais em torno de livros em algumas lojas cariocas mas em duas delas eles acontecem com regularidade; na unidade de Bangu e na do Recreio. A loja de Bangu criou o Clube Banguense de Leitura que tem perfil no Instagram com fotos e vídeos dos animados encontros onde há sorteio de brindes, jogos de perguntas e outras brincadeiras para um público na faixa jovem adulto. Carla Oliveira, idealizadora dos encontros, diz que a ideia veio antes da pandemia como forma de trazer o cliente para perto da loja, mas só foi concretizada em 2023. A princípio as discussões eram em torno de gêneros literários e a partir de abril deste ano começou a leitura de uma obra a cada mês. Segundo ela o clube também estimula a aproximação dos leitores com as editoras. A cada mês há parceria da livraria com uma delas que apresenta opções para a escolha dos participantes. Em novembro a Faro foi a editora parceira e o livro escolhido pelos participantes do clube, A misteriosa livraria Yokai. Apesar do título que remete aos yokais, criaturas sobrenaturais do folclore japonês, o livro, lançado este ano, é do carioca Eliel Barberino;narra uma história em torno de uma livraria herdada em Tóquio que pode ser enquadrada no gênero de crescente sucesso confort literature. Também conhecida como ficção de cura ela dá ao leitor uma sensação de bem estar e as livrarias, não por acaso, estão nos títulos de algumas dessas obras como: Meus dias na Livraria Morisaki – do japonês Satoshi Yagisawa, Bertand Brasil, 2023; A pequena livraria dos sonhos, da escocesa Jenny Colgan, –Arqueiro, 2019 ou O clube de leitura dos corações solitários, da norte-americana Lucy Gilmore – Buzz, 2024. Na internet, os clubes do livro têm milhares de participantes como o do influenciador digital Felipe Neto que, inaugurado em julho conta com mais de cem mil inscritos. Para Adroaldo, da Panorama Romanceiro isso é bom porque dinamiza as vendas nas livrarias.O site PublishNews confirma que livros indicados nesse clube entram na lista dos mais vendidos. Mas o acolhimento em um clube de leitura nas livrarias é impossível de ser replicado no mundo virtual onde muitos se apresentam por apelidos e avatares. A leitora Lorena Coelho que participou nesta terça da discussão do segundo capítulo do livro Ficar com o problema, deu depois seu testemunho no grupo de whatsapp: “ Adorei conhecer vocês. A Casa 11 é tudo de bom.”
Kleber Oliveira 29/11/2024 |