A leitura das crianças
A literatura infantil demorou a entrar na história do mercado editorial e, desde então, passou por transformações na forma, conteúdo e venda. Hoje, concorre com as novas tecnologias pela atenção dos mais novos com sucesso de público e crítica.
Detalhe da capa de O Saci Pererê, reedição do primeiro livro de Monteiro Lobato
O fechamento, este ano, no Rio, da Malasartes, primeira livraria para crianças no Brasil, fundada em 1979, e também da Bicho que Lê, na Tijuca, fundada em 2013, mostra que, enquanto as vendas aumentam, há uma mudança nas formas de comércio do livro infantil. Em 2023 esse gênero teve crescimento de 7% no mercado, segundo a Nielsen Bookdata, e hoje representa 14% do comércio de livros no país. A sexta edição de Retratos da Leitura no Brasil, este ano, diz que a leitura motivada pelo gosto tem o maior percentual entre as crianças de 5 a 10 anos, com índice de 38%. Em entrevista à AEL, Ana Maria Machado, um dos maiores nomes da literatura infantil no país lembra: “Um ano depois da inauguração da Malasartes havia 14 livrarias infantis só no Rio. Algumas continuaram por muito tempo como a Pé de Página, a Arte e Artemanhas. Depois as grandes livrarias começaram a ter seção infantil.” Na Livraria Leitura, com 12 unidades no Rio, de 15% a 25% do espaço nas lojas é ocupado por livros infantis, segundo Rodrigo Bernardes, sócio da rede. “O livro infantil é muito importante para nós”, diz ele, “ é o segmento que mais cresce na Leitura. O que nos motiva muito já que entendemos que estamos formando novos leitores.” As cinco lojas cariocas da Livraria da Travessa têm amplos espaços dedicados ao público infantil com decoração e mobiliário diferenciados, à exceção da unidade do Centro onde a oferta é menor porque a região é pouco frequentada por crianças e nunca teve uma livraria infantil. “Vendemos poucos infantis porque o pai não está com as crianças”, diz Ricardo Pereira, da Academia do Saber, maior rede de usados do Rio com quatro lojas no Centro. O grande estoque do gênero no depósito vem com a compra de bibliotecas: “Não exponho na loja porque não tem espaço e roda pouco.” Na Academia do Saber os mais vendidos para o público de um a cinco anos são clássicos adaptados para a idade como Branca de Neve e os Três Porquinhos. Acima dessa faixa o best-seller é Diário de um Banana, de Jeff Kinney. Para Ricardo, que lida com obras antigas, coleções como O mundo da Criança e Tesouro da Juventude, a literatura infantil tinha mais conteúdo informativo do que a atual. Em Ipanema, na Pequeno Benjamin, Benjamin Magalhães vê uma melhora da qualidade no gênero : “ Entre o que tínhamos e o que há hoje melhorou 10 mil por cento. Os livros infantis são maravilhosos no sentido estético e no conteúdo; abordam uma ampla diversidade de temas.” “ A alfabetização não é vovô viu a uva; vem de métodos como o Paulo Freire ligados à realidade da criança. Inclui bullying, racismo, gênero, coisa que havia muito levemente nos contos de fadas e hoje está explícita.” Segundo Benjamin, seu best-seller no segmento são os livros da escritora espanhola Olga de Dios, com temas, tidos por ela como imprescindíveis para a formação das crianças, como diversidade afetiva e sexual, inclusão, meio ambiente e consumo responsável. Para o público acima dos cinco anos Ziraldo é o mais procurado. “Os livros de antigamente tinham informação para todo tipo de criança mas as famílias são distintas social e economicamente.” diz Benjamin, “Hoje você tem livros maravilhosos escritos por autores contemporâneos de cada setor da sociedade. A pluralidade é muito maior e isso se reflete nas vendas.” Ele dá o exemplo de A catástrofe , da polonesa Iwona Chmielewska : uma criança queima a toalha da mãe com o ferro de passar. “Primeiro ela tenta esconder” diz Benjamin, “mas resolve mostrar, e a reação da mãe é linda, maravilhosa. Os contos eram muito punitivos, com conceitos morais fortes, hoje a coisa está mais fluida e agradável.” As descobertas da ciência refletem nesse segmento: segundo Benjamin são muito procurados os livros de contraste para crianças de até um ano. Nessa idade elas não têm bem definida a percepção das cores e o contraste forte nas ilustrações como preto e branco estimula a visão. Escritores de sucesso para adultos também se voltam para as crianças, como Itamar Vieira Júnior, mais vendido em 2022, com Torto Arado, que lançou este ano Chupin, sobre trabalho infantil nos arrozais do nordeste. O livro foi eleito pela revista literária 471 como o melhor infantil de 2024: “Chupin confirma a marca da ficção de Itamar Vieira Júnior, na qual crítica social contundente se une à perspectiva poética de personagens”. Segundo a presidente da Liga Brasileira de Editoras Independentes, Lizandra Magon, mais da metade das 175 afiliadas publicam livros infantis e 40 são especializadas no gênero. Ela destaca a importância dos programas de governo na compra de obras para as escolas que permite acesso dos alunos a essa produção.. Grandes editoras lançaram, recentemente, selos para esse público como o Reco Reco, da Record; o Glida, da Aleph e o Baião, da Todavia. A Companhia das Letras tem quatro selos infantis como o Companhia da Letrinhas, que representam 21,4% do faturamento. A maioria dessas editoras vende direto ao público pela internet. Livros infantis escapariam do comércio virtual ao demandar contato físico na compra já que a qualidade do papel e das ilustrações no miolo são determinantes na escolha da obra. Mas uma das mudanças nesse comércio foi a transformação das livrarias em ponte para que a venda à distância ocorra. “Se o pai vem à livraria com a criança, ela chora, pede o livro, ele compra na hora, mas se vem sozinho ele escolhe o que quer e compra pela internet”, diz Claudia Araujo, da Livraria Casa Verde, na Tijuca. Esse comportamento dos país, segundo ela, se repete nas feiras que a livraria promove nas escolas. O maior evento da literatura infantil no mundo, a Feira de Bolonha, na Itália, contou este ano com a participação de mais de 40 editoras brasileiras. Na nova categoria, livros para bebês, o vencedor foi Dia de Lua, do brasileiro Renato Moriconi que já ganhou o Troféu Monteiro Lobato, o Jabuti e foi premiado pela Fundación Cuatrogatos, dos EUA. No Prêmio Jabuti deste ano o vencedor foi Cabo de Guerra, de Ian Brenman com ilustrações de Guilherme Karsten, como melhor livro infantil e melhor ilustração. Na premiação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a melhor obra para crianças foi Quando as coisas desacontecem, de Alessandra Roscoe, ilustrações de Odilon Moraes, sobre morte, luto e transformação. O Brasil ainda não ganhou um Nobel de Literatura, mas a produção infantil brasileira, foi três vezes vencedora do Prêmio Christian Andersen, tido como o Nobel da categoria. Lygia Bojunga e Ana Maria Machado foram contempladas como escritoras e Roger Mello como ilustrador. A premiação não tem influência nas vendas, segundo Claudia, da Casa Verde, embora credibilize, segundo ela, os livros a serem indicados nas escolas: “O que vende é o atendimento, conhecer o cliente fazer a venda acontecer.” Já Benjamim, do Pequeno Benjamin diz que os prêmios “costumam ter alguma influência nas vendas principalmente se o livro levanta uma questão atual, com ilustrações maravilhosas. Mas não pautamos a livraria pelos prêmios, e sim por nossa curadoria.” “As premiações me passam a ideia de que são política.” diz Benjamin, “há tanta gente escrevendo bem que fica difícil você escolher. Não falo isso em detrimento dos que ganharam, porque são sempre livros bons, mas tem outros maravilhosos.” O primeiro livro ilustrado para crianças foi Orbis Pictus, de John Amos Comenius, publicado em 1658, na Alemanha. Falava da fauna, flora e atividades cotidianas, inclusive religião. Escrito em latim e traduzido para vários idiomas Mundo Visível foi, por décadas, o livro didático mais usado na Europa. O Dia Internacional do Livro Infantil é comemorado em 2 de abril, data do nascimento do dinamarquês Hans Christian Andersen, autor de clássicos como O Patinho Feio, A Pequena Sereia e A Roupa Nova do Rei. Já o Dia Nacional dedicado ao gênero é, desde 2002, em 18 de abril, data do nascimento de Monteiro Lobato, tido como o pai da literatura infantil brasileira. O criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, não foi o primeiro grande nome da literatura nacional a escrever literatura infantil. Antes, autores como Olavo Bilac, Coelho Neto e Julia Lopes de Almeida, entre outros, já se dedicavam a esse ofício com obras adotadas em escolas. As manhãs da Avó: leitura para a infância, editado pela livraria e editora Garnier em 1875 é tido como precursor da literatura infantil no Brasil, assinado por Victoria Colonna, pseudônimo que remete à Marquesa de Pescara, importante nome da literatura italiana quinhentista. O primeiro livro editado por Monteiro Lobato, o Saci-Pererê – Resultado de um inquérito, é uma coletânea de textos publicados no Jornal O Estado de São Paulo, que pediu aos leitores comentários sobre o personagem do folclore brasileiro. Lobato assinou o posfácio com a defesa de uma arte nacional que valorizasse nossa cultura, o que foi o seu mérito como autor infantil. Quando A Menina do Narizinho Arrebitado saiu em capítulos na Revista Brasileira, em 1920, um editor comemorou como um marco: “a literatura infantil tem sido, com poucas excepções, pobríssima de arte, e cheia de artificio. Ler algumas páginas de certos livros de leitura, equivale, para rapazinhos espertos, a uma vacina preventiva contra os livros futuros”. Acusações de racismo em suas histórias têm levado ao questionamento sobre o uso de seus livros na educação contemporânea. A obra dele caiu em domínio público em 2019 e edições recentes tentaram eliminar ou adaptar passagens controversas. Mas, o livreiro Benjamin é contra essa censura: “A questão do racismo de Monteiro Lobato tem de ser contextualizada, falar com a criança sobre a época. Ou então, vai se eliminar grandes obras, não só literárias, mas de cinema, teatro e artes plásticas. As sociedades mudam, a moral muda. É tirar a capacidade do próprio jovem avaliar como era no passado”. A polêmica não prejudica o sucesso da obra de Lobato. Ele está em segundo lugar entre os autores preferidos do público, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgado este ano, atrás de Machado de Assis e a frente de Maurício de Souza. A presença do escritor paulista no imaginário nacional pode ser medida pelo relato do livreiro Renato Pereira de outra unidade da Academia do Saber, no Centro. “Ri muito”, diz ele, sobre uma senhora humilde que foi à loja à procura de um livro de Monteiro Lobato que ele não tinha. Ao ver o seu desânimo com a impossibilidade da compra, quis confortá-la e ela explicou: era avó de um menino que não gostava de estudar e foi informada pela outra avó de uma simpatia; se colocasse um pedaço de papel com o nome do neto escrito dentro do livro de Monteiro Lobato ele passaria a gostar de ler.
Kleber Oliveira 23/12/2024 |