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Uma vida entre os livros

 

Falecimento da tradutora e ex-livreira Milena Duchiade priva mercado editorial de uma de suas vozes mais atuantes, pioneira na reivindicação da regulamentação do preço  fixo  para o livro, que tramita no Congresso como Lei Cortez.

 

 

 

Médica por formação e livreira por vinte anos na Leonardo da Vinci, Milena, que  migrou para a tradução de livros, após a venda da livraria, faleceu neste domingo aos 70 anos, vítima de um câncer no intestino, diagnosticado em 2023.

“Muito obrigado por tudo, Milena” escreveu Daniel Louzada em mídia social da Leonardo da Vinci comprada por ele em 2016. “Ela foi uma pessoa fundamental para a manutenção e continuidade desta livraria. Seu compromisso foi além de sua saída, inclusive durante o terrível momento da pandemia.”

“Apesar de sua braveza para defender seus princípios, era uma amiga muito generosa”, diz  a livreira Solange Whehaibe, ex-Livraria Veredas, de Volta Redonda, uma das fundadoras e ex-presidente  da Associação Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro: “ À Milena, minha admiração, meu pranto e muita saudade”.

Filha do casal de livreiros André Duchiade e Vanna Piracinni fundadores da Leonardo da Vinci, Milena cresceu entre livros, e tinha a livraria, fundada dois anos antes do seu nascimento, como uma irmã mais velha, conforme relato em entrevista à AEL.

Foi médica pediatra e professora da Fiocruz até abandonar a carreira para administrar a livraria junto com a mãe já septuagenária. Segundo ela o ofício de livreira veio como missão; apesar do amor aos livros não tinha vocação para o comércio, se dizia uma capitalista relutante. Quando assumiu, o mercado livreiro passava por uma revolução com o surgimento da internet, das grandes redes e da Amazon.

“Não fui tão bem sucedida quanto a minha mãe, os tempos mudaram. Nunca quis ocupar o lugar dela que tinha muito mais experiência e sucesso como mulher de negócios.Tirou a livraria do nada, da concordata, quando meu pai morreu e depois do incêndio”, diz ela, numa referência à destruição da livraria por um incêndio de origem suspeita em 1973 durante o regime militar.

A livraria, até então especializada em livros importados, se viu transformada, na gestão de Milena,  em vitrine onde os clientes pesquisavam títulos para encomendarem pela internet. Politicamente engajada desde a universidade, a livreira  transferiu seu ativismo em defesa das livrarias e  assumiu a presidência da AEL, em 1996.

Antes de se tornar livreira fez um curso sobre o ofício em Paris onde aprendeu sobre a Lei Lang, de 1981, similar à Lei Cortez que tramita no Congresso Nacional. Graças a esse conhecimento, a AEL foi a primeira entidade a reivindicar o preço fixo para o livro com um abaixo assinado entregue em 1999 no 30º Congresso de Editores e  Livreiros, em Florianópolis, SC.

Criticada na época, até por livreiros, a lei é consenso no mercado editorial embora questionada em alguns órgãos da imprensa. Mas Milena, mesmo fora do mercado livreiro, não deixou sem resposta as críticas à lei do jornalista Elio Gaspari em O Globo com o envio de uma longa carta aos jornal em abril deste ano terminada com o parágrafo:

“Participei ao longo dos quase 20 anos em que fui livreira de praticamente todos os movimentos em prol da Lei do Livro, seja na AEL, seja na ANL. Até hoje, foi uma luta inglória , mas nem por isso deixo de acreditar que valeu a pena.”

“Milena foi uma incansável batalhadora pela causa das livrarias”, diz Rodrigo Ferrari, da Livraria Folha Seca; “Mesmo afastada do comércio livreiro costumava ligar para comentar e sugerir ações, grande amiga e incentivadora. Vai fazer muita falta. Nunca esquecerei a firmeza e o empenho com que se entregou aos projetos que desenvolvemos junto à AEL”

Rodrigo e Milena foram os idealizadores do Roteiro das Livraria do Centro Histórico do Rio de Janeiro, mapa com tiragem de 100 mil exemplares que teve cinco edições  anuais distribuídas nas livrarias e pontos turísticos da cidade, projeto do qual a então livreira muito se orgulhava.

Ela tinha um exemplar do Roteiro colado na mesa da Leonardo da Vinci onde indicava ao cliente no mapa a livraria mais próxima, quando não tinha o livro procurado: ”uma super rede colaborativa”, dizia, “Acredito nas amizades construidas em cima do trabalho. Enfrentar os problemas juntos. Acaba ficando meio irmão dessas pessoas”.

“Ela foi  quem me abriu as portas para o mundo dos livreiros em 2008.” diz Ivan Errante,  da Belle Époque,  no Méier, que  trabalhou por dois anos na Da Vinci: “Aprendi muito apesar do temperamento  difícil da Milena. Conseguimos nos entender rincipalmente após a minha  saída e abertura da Belle Époque”, que, como a Da Vinci, renasceu das cinzas após incêndio em 2022.

“Ela sempre me apoiou e divulgou a Belle para nomes importantes da cidade. Nos últimos anos, conversamos, via telefone, por horas sobre o ofício de livreiro,  sobre a vida. Fica o sentimento de perda e a necessidade da valorização do legado da Milena e Dona Vanna”.

Como pesquisadora do mercado editorial Milena tem dois trabalhos com o professor Kaizô Iwakami  Beltrão, da Fundação Getulio Vargas: O livro no orçamento familiar e Preferências de Aquisição de Livros pelos Professores da Rede Municipal do Rio de Janeiro.

Como tradutora de livros do francês para o português, ofício que passou a exercer após a saída da livraria tem “uma listinha” com títulos como Cosmpoéticas do Refúgio, de Denetem Tauam Bona; Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret e  A Economia Feminista, de Hélène Perivier

O destaque vai para Curar o Ressentimento – o mal da amargura individual, coletiva e política, de Cynthia Fleury. “Foi um trabalho enorme por conta da pesquisa porque vem com citações de autores estrangeiros que têm de ser traduzidas do original em que foram escritas e não do francês ou vira tradução de segunda mão. Tenho muito orgulho dele.”

No novo ofício Milena também se engajou na luta corporativa se filiando à Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes e ao Sindicato Nacional dos Tradutores, onde ocupou cargo na diretoria, mas se dizia menos ativa por ser iniciante na profissão e desconhecida no mercado.

Além do trabalho era ativista da causa ecológica com participação no projeto Pão de Açucar Verde de reflorestamento do ponto turístico carioca através do plantio em regime de mutirão. Também fazia trilhas e escaladas com filiação ao Centro Excursionista Brasileiro.

Milena faleceu no apartamento em que morava no bairro de Laranjeiras, Zona Sul carioca e deixa os filhos André Duchiade, jornalista, e Joana Duchiade, produtora audiovisual que lhe deu o neto Joaquim.

As condolências para honrar a vida e a memória de Milena Duchiade serão nesta terça feira, 31, durante o velório  na Capela Histórica do Cemitério da Penitência, entre 9h e 13h, na  Rua Monenhor Manuel Gomes 307, Caju,

 

 

Kleber Oliveira

30/12/2024