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A caça ao livro

 

Enquanto a liberdade de expressão no Ocidente, via internet, se expande de forma quase irrestrita, o livro - objeto cultural mais venerado e mais incinerado na história - continua perseguido.

 

Livraria norte-americana exibe livros banidos em escolas e bibliotecas do país

 

No Brasil,  o livro da vez na discussão sobre censura é Diário da Cadeia, de Ricardo Lísias, sob o pseudônimo Eduardo Cunha. A obra de ficção teve seu recolhimento determinado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no dia 16. Ele argumenta que o título e o nome do autor podem levar o público a acreditar  que se trata de uma narrativa  do ex-deputado Eduardo Cunha sobre sua prisão  na operação Lava Jato.

O Sindicato Nacional dos Editores de Livros manifestou indignação e repudiou o ato de censura. No site da entidade, o presidente Dante Cid afirma: “presumir que o público não consiga entender o caráter de paródia da obra – explícito desde a capa, que deixa claro tratar-se de um pseudônimo – é subestimar a inteligência do leitor brasileiro”.

Alexandre Martins Fontes, presidente da Associação Nacional de Livrarias, também é contra a decisão do ministro:"Não vejo maldade nessa história. O autor tem todo o direito de exercer a liberdade de criar. Sempre me colocarei a favor da liberdade de expressão. Se estiver numa posição de juiz  vou preferir não censurar."

O presidente da ANL ressalta, no entanto, que: "Alexandre de Moraes tem tido papel relevante na história recente do Brasil, adotando posturas firmes com relação à disseminação de  fake news na internet, mentiras deslavadas - uma agressão à sociedade."

Outra ação recente da censura ocorreu  em novembro,  quando Flavio Dino, também ministro do STF, mandou recolher  quatro livros de direito do advogado Luciano Dalvi, que, segundo ele, violam a dignidade da pessoa humana e propagam ódio homofóbico. Os livros  podem voltar a circular com a supressão dos trechos questionados.

Para  Adroaldo Garani, da Associação Estadual de Livrarias RJ, a censura não deve ter espaço na democracia: “Sou contra por princípios ideológicos e filosóficos, mas há exceções. Não podemos permitir a propagação de ideologias nazistas, discursos homofóbicos,  ou a defesa do feminicídio  e do racismo.”

Adroaldo  cita reportagem recente sobre bandas brasileiras de rock nazi black metal que atacam negros, homossexuais e judeus: ”Nesses casos,  não é questão de censura mas de uma legislação que impeça o crescimento desses movimentos.”

Para ele, no entanto, a proibição no Rio, da autobiografia de Adolph Hitler, Minha Luta, vendida em outras cidades, como São Paulo, não beneficia a cultura: “ Impossibilita o estudo da ideologia numa perspectiva histórica. Ler O Capital, de Karl Marx, o outro lado da moeda, não fará, necessariamente, do leitor um comunista.”

Para o presidente da ANL, Alexandre Martins Fontes, essa questão é complexa porque o livro de Marx não incita ao ódio como o de Hitler: "mas, censurar a ponto de impedir um estudo histórico que permita que se entenda como era a Alemanha  naquele tempo também é um erro."

Alexandre considera uma tragédia a onda de banimento de livros nos EUA e acredita que vá aumentar com o  retorno de Donald Trump à presidência e refletir no Brasil:"sou editor, tenho visto escolas deixando de adotar livros porque falam de bruxa."

Nos Estados Unidos, a organização PEN America, informou que entre 2023 e 24 o número de livros banidos em escolas e bibliotecas norte-americanas quase triplicou: foram mais de 10 mil obras censuradas contra as 3 362 no ano anterior.

A estratégia de banir livros cresceu nos EUA, nos últimos anos, principalmente em estados com governo republicano onde o ativismo político religioso ganha força, com destaque para a Flórida e Iowa. Cerca de 50% das obras censuradas dão voz à temáticas LGBTQIA+ e à população negra e indígena.

No Brasil, iniciativas de banimento seguem a mesma lógica, como  em 2024,  com O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório. Ganhador do Prêmio Jabuti 2021, na ficção,  o livro foi distribuído nas escolas públicas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático, do MEC.

Escolas do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul pediram que ele fosse banido por uso de linguagem vulgar quando o tema central do romance é a discussão sobre racismo e como a linguagem é agente dessa prática.

Também em 2024, O menino marrom, de Ziraldo, foi suspenso nas escolas de Conselheiro Lafaiete, MG, após pressão dos pais que consideraram o conteúdo agressivo,  sendo que o teor da obra é inclusão e diversidade.

Em 2019 a Bienal do Livro do Rio de Janeiro foi, pela primeira vez em 40 anos, vítima de tentativa de  censura; o então prefeito da cidade Marcelo Crivella mandou recolher o romance gráfico Vingadores, a Cruzada das Crianças, incomodado com o beijo entre dois garotos na capa.

Em nota, a Prefeitura disse: “ser inadequado que uma obra de super-heróis apresente e ilustre o tema do homossexualismo a adolescentes e crianças.” A direção da Bienal não retirou os livros e disse que daria voz "a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser". Com  efeito reverso, a tentativa de censura esgotou o livro no primeiro dia do evento.

Em 2015 o Supremo Tribunal Federal derrubou a censura prévia à obras biográficas pleiteada por artistas em defesa da privacidade. Entre eles estavam Caetano Veloso, autor da música É proibido proibir, e Chico Buarque, autor da música   Afasta de mim esse cálice, que ouviram da ministra Carmém Lucia, relatora do processo: “Cala a boca já morreu.”

A censura no Brasil  vem dos tempos coloniais; em 1769, foi criada a Real Mesa Censória para reprimir melhor os livros que desafiassem a ordem. No século XX  a função foi do Departamento de Imprensa e Propaganda, DIP, durante o Estado Novo, como relata Carlos Drummond de Andrade na crônica Livros Assassinados, publicada na revista Sombra em 1945:

“José Lins do Rego, Jorge Amado e Gilberto Freyre sofreram  a tortura das brasas, numa praça da velha e gloriosa cidade. Não podendo torrá-los pessoalmente, como seria mais agradável, o interventor federal mandou por na fogueira exemplares de romances dos dois primeiros, e de ensaios sociológicos do segundo”, escreveu o poeta sobre uma queima de livros em Salvador.

Monteiro Lobato, hoje no centro das atenções do debate sobre censura, acusado de racismo,  teve toda sua obra infantil proibida durante o Estado Novo, por isso  e pelas divergências políticas com o  governo de Getulio Vargas que via ideias subversivas em sua literatura.

A proibição de livros  frequentemente desperta mais interesse que uma premiação. O autor anglo-indiano Salman Rushdie, ganhador do Booker Prize, em 1981, com o romance Filhos da Meia Noite, só se tornou um best-seller mundial com a publicação em 1988 de Os Versos Satânicos.

Proibido em vários países muçulmanos, o livro gerou sentença de morte  para o escritor dada pelo Ayatollah Komeine, do Irã. Esfaqueado em Nova York, em 2022, ele sobreviveu, mas antes, em 1991, o tradutor do livro para o japonês, Hitoshi Igarashi, foi morto a facadas em Tóquio.

A Igreja  Católica tem histórico de censura com o Index Librorum ProhibitorumÍndice dos Livros Proibidos, criado em 1559 e abolido em 1966. A longa lista  incluiu obras de  Galileu, Espinosa, Balzac e Stendhal. Ainda hoje o clero, sem proibir, previne  contra livros como O Código da Vinci, de Dan Brown e Harry Potter, de J. K. Rowling,  acusado de ensinar magia às crianças.

A Bíblia, livro mais vendido da história, é proibida em países de regime totalitário como a Coreia do Norte e nações muçulmanas,  como o Afeganistão, onde portar um exemplar pode resultar em punição. Na China, país ateu, ela é  permitida, mas desde 2018 a venda on-line está proibida e é regulada pelo governo.

Para outros livros, a censura  chinesa é rígida, especialmente se há temas  sensíveis ao Partido Comunista como democracia, direitos humanos, crítica ao governo,  independência  do Tibet, Taiwan e Hong Kong, ou conteúdos com valores ocidentais.

Há cerca de dez anos a ingerência da China no mercado editorial de Hong Kong ficou mais rígida. A censura aumentou   e houve  sequestro de livreiros pelo governo chinês, como de cinco profissionais da Causeway Bay Books, depois forçados a confessar seus “crimes”  em transmissão da TV estatal chinesa.

No Brasil, livreiros também pagaram por seus livros. A livraria Anita Garibaldi, em Florianópolis, SC, com acervo de esquerda foi invadida em 3 de abril de 64, logo após o golpe militar, por 30 pessoas que incendiaram a loja e queimaram o acervo na praça em frente. O livreiro Salim Miguel  havia sido  preso no dia anterior.

Com manchete no topo da primeira página; “Populares incendeiam livros marxistas na livraria Anita Garibaldi”, o jornal A Gazeta noticiou: “o povo florianopolitano deu provas sobejas de sua fibra democrática, extinguindo um foco pernicioso que há anos se instala no coração de nossa cidade”.

Em Niterói, no estado do Rio, o editor e livreiro  Aníbal Bragança, da Livraria Encontro, “comprometida com a contestação à ditadura e uma perspectiva de esquerda” também foi preso pelo regime: ”ficamos uma semana no DOPS, sem tortura mas com situações psicologicamente difíceis. Os agentes saquearam a livraria” relatou ele em entrevista à AEL.

Aníbal reabriu a livraria, mas muitos clientes, por medo, se afastaram: “Depois do AI-5 não sofremos o que a Civilização Brasileira sofreu, chegou a ser incendiada, mas tivemos muitos incômodos como  as pichações feitas pelo PCC – Comando de Caça aos Comunistas.”

A Livraria da Civilização Brasileira, no Centro do Rio, ligada à editora de mesmo nome, além de incêndio, sofreu ataques a bomba durante o regime militar  e o proprietário, o editor  Ênio Silveira, foi preso 7 vezes.

A Leonardo da Vinci, também no Centro do Rio,  foi outra livraria incendiada e destruída pelo fogo em 1973.  Milena Duchiade que depois assumiu a gerência da Da Vinci, fundada por sua mãe Vanna Piraccini, disse em entrevista à AEL que o incêndio foi criminoso.

“Nunca houve investigação. Eram os últimos dias do governo Médici, tempos duros. A livraria não era querida do poder. O ano de 1973 foi muito difícil para a história do Brasil. A linha dura estava ouriçada.”

A queima de livros, remonta a Roma antiga, foi sistematizada na Inquisição pela Igreja Católica e é o tema do clássico Fahrenheit 451 ambientado em um futuro distópico onde ter livros é proibido. A missão dos bombeiros é  incinerá-los à temperatura de 451 graus Fahrenheit, ponto de combustão do papel.

Fahrenheit 451 foi banido em várias escolas dos Estados Unidos e o seu autor, o norte-americano Ray Bradbury, que o publicou em 1953, declarou; “Você não precisa queimar livros para destruir uma culturabasta as pessoas pararem de -los.”

 

Kleber Oliveira

para a AELRJ

31/01/2025