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A Cura na Livraria

 

O conforto mental e espiritual  proporcionado pelos livros ganhou reforço no pós-pandemia pelo gênero rotulado como ficção de cura,  que traz histórias terapêuticas,  muitas ambientadas em livrarias e  frequentemente com gatos envolvidos na trama.


Detalhe da capa do livro Bem -Vindos à Livraria Hyunam-dong,  de Hwang Bo-reum

 

A tendência vem do Japão e da Coreia do Sul: histórias que oferecem alívio emocional e tranquilizam o leitor,  sem  narrativas dramáticas e sempre com um final feliz.  Também chamada literatura de conforto ela é um sucesso comercial;  editoras de outros países investem no gênero, que já chegou à produção nacional.

Meus Dias na Livraria Morisaki, do japonês Satoshi Yagisawa e  Bem-Vindos à Livraria Hyunam-dong, da sul-coreana Hwang Bo-Reum são best-sellers em seus países de origem e no Brasil, onde já foi lançado um título dentro do mesmo estilo assinado pelo carioca Eliel Barberino:  A Misteriosa Livraria Yokai.

Outros cenários  da ficção de cura incluem  bibliotecas e cafeterias  e os gatos também aparecem  como personagens importantes, dada a relevância  dos felinos na cultura japonesa onde são   um símbolo de sorte.

Vou Te Receitar um Gato, de Syou Ishida, Os Gatos do Café da Lua Cheia, de Mai Mochizuki, Se os Gatos Desaparecessem do Mundo, de Genki Kawamura são best-sellers no Japão, o último com dois milhões de exemplares vendidos.

O Gato que Amava Livros, de Sosuke Natsukawa, é  outro fenômeno editorial japonês  sobre o herdeiro de uma livraria que tem a ajuda do animal para resgatar livros aprisionados e mal tratados.

No Brasil, o maior sucesso dessa literatura veio da Inglaterra: A Biblioteca da Meia Noite, de Matt Haig, vendeu cerca de 700 mil exemplares  e ficou em terceiro lugar na lista de best-sellers de ficção de 2024 no site PublishNews. Esta semana, ele está em quinto lugar na lista de mais vendidos de  ficção do site.

A história gira em torno de uma mulher que depois da morte do seu gato e de ser demitida do emprego encontra refúgio em uma biblioteca onde pode rever suas escolhas através dos livros.

“A ficção de cura  tem em comum a temática de revisitar o passado; fazer as pazes com arrependimentos e culpas”, diz Renata Pettengill, da Record, editora que entrou no segmento com o livro de Matt Haig e depois lançou títulos como Meus Dias Na Livraria Morisaki, que, teve a sequência Uma Noite na Livraria Morisaki, entre outros.

“A pandemia fez todo mundo parar para pensar e as pessoas passaram a refletir e questionar mais sobre a vida”, diz Renata. “A saúde mental ficou abalada e acho que se criou o terreno fértil para esse tipo de ficção.”

“Toda literatura tem a capacidade de inspirar de alguma forma desde os primórdios,”  diz a editora. “ O diferencial  da ficção de cura é que, além de contar uma história bonita, o autor tem a intenção de proporcionar conforto, consolo e uma resposta terapêutica, promovendo a transformação pessoal.”

A ambientação em livrarias se deve à importância que o livro ainda tem para as novas gerações: ”É fácil seduzir esse público levando para ele uma história nesse ambiente”, diz Renata. “Muitas vezes envolvido pelo mundo virtual,  ele vê na livraria um lugar de aconchego, de encontro e cultura.”

As redes sociais ajudam a  manter o livro em  evidência pois priorizam a imagem. Segundo ela, comunidades  como booktokers compartilham recomendações literárias  exibindo as capas dos livros  em cenários que incluem estantes das bibliotecas  particulares ao fundo, algo inviável com e-books.

Já os  gatos tiveram sua imagem fortalecida por estarem presentes nessa literatura vinda de países que lhes atribuem grande importância: “Antes da ficção de cura houve uma fase em que livros associados a gatos não estavam vendendo bem. Lançamos Um Amor de Gato –da norte-americana Mellinda Metz, uma comédia romântica - em 2019, mas o desempenho não foi tão bom.”

Para Renata, as diferenças culturais com os países  produtores  dessa literatura têm sido atenuadas, há algum tempo, com o consumo da música K Pop, dos dramas sul coreanos e a disseminação dos estereótipos da cultura japonesa, como o zen, o problema do suicídio e da solidão.

No Brasil, o primeiro lançamento dessa safra de ficção asiática foi, segundo o editor Rafael Goldcorn, da Valentina,  em 2022, com Antes que o Café Esfrie, do japonês  Toshikazu Kawaguchi. “Quando compramos os direitos, ele havia vendido um milhão de exemplares no Japão e era número um  na Itália, aqui já vendeu mais de 200 mil cópias.”

“São livros que falam muito de luto,” diz Rafael, “a história é fascinante porque envolve viagens no tempo. É uma mistura  com realismo mágico,  porque  são viagens sem nenhuma tecnologia como é a ficção científica.   É uma literatura de cura da alma, de uma angústia, de um remorso ou arrependimento”.

Antes que o Café Esfrie está no quarto  volume da série. Ainda este ano a Valentina lança nova ficção de cura, desta vez vinda da Malásia, escrita por Nadia Mikail. O livro, que ainda não tem nome em português, venceu o Prêmio Waterstone, em 2023, concedido pela  rede de livrarias inglesa. A  tradução do título da versão inglesa   Os gatos que encontramos  pelo caminho.

O Brasil também aderiu à  ficção de cura com ambientação na Ásia  em A Misteriosa Livraria Yokai, do carioca Eliel Barberino, lançado pela Faro Editorial em outubro de 2024,  com trama desenrolada em Tóquio.

Segundo o editor Pedro Almeida, a obra resultou da paixão do autor pelo Japão somada ao momento de interesse do público: “Ele aproveitou essa oportunidade para contar uma história que já estava em seus planos há algum tempo.”

O livro tem tido um bom desempenho no mercado, segundo o editor,  com 10 mil exemplares vendidos e duas reimpressões. A  Faro  programou outra publicação do autor, que também ambientada em Tóquio mas com personagens inéditos.

A Misteriosa Livraria Yokai tem os elementos da ficção de cura como a fantasia - yokais são seres fantásticos do folclore japonês - acrescida de um tempero nacional: uma relação homoafetiva entre o dono da livraria e um cliente brasileiro.

“A  ficção LGBT ainda é um tabu em alguns países asiáticos e, consequentemente, é menos popular” diz Pedro. “No Brasil, o  tema é tratado de maneira mais aberta e nosso mercado tem apostado fortemente nesse segmento.”

Para Pedro, o ambiente das livrarias, presente em muitas histórias  combina perfeitamente com as características do novo gênero: “A livraria é um espaço de encontro, tranquilidade e introspecção, o que faz total sentido na ficção que aborda a cura.”

“Mais livros e menos farmácias” foi o slogan da Casa 11 na inauguração em 2023, em Laranjeiras, Zona Sul do Rio. A livraria, iniciativa do casal Ana Mallet e David Kestemberg, médicos e livreiros, é uma cooperativa com mais de cem sócios, a maioria  profissionais de medicina.

“Toda ficção, quando bem construida,  tem o poder de curar algo que a pessoa necessita e ter um efeito diferente em outra”,  afirma  Ana Mallet. Ela não aprova o rótulo ficção de cura, ”é reduzir a literatura a  uma utilidade , ela pode ter vários papéis.”

“Gosto do livro  A Utilidade do Inútil, do italiano Nuccio Ordine,” diz ela, “temos que colocar uma utilidade porque vivemos num sistema capitalista onde tudo só presta se for útil. Para mim Grande Sertão - Veredas pode ser uma ficção de cura, há tantas coisas bonitas alí, a questão da coragem. “

“Mas a ficção de cura tem suas características, é fácil de ser lida, é aquilo mesmo, as entrelinhas não existem “,  diz ela, que leu e  gostou de Meus Dias na Livraria Morisaki, “gosto de ler sobre livrarias.”

“A livraria, para todos nós que estamos aqui, é um lugar de cura, um verdadeiro refúgio. Convivemos de forma ampla com muitas pessoas , uma formação coletiva em meio a um sistema que incentiva o individualismo. O afeto circula e o afeto cura. No entanto,  não posso simplesmente dizer:'Vá  a uma livraria que você vai se curar'.”

Ana e David são professores em faculdades de medicina onde usam a literatura  para desenvolver a  sensibilidade dos futuros médicos por meio de  matérias eletivas e oficinas com os alunos.” Eles leem muitos livros técnicos sobre doenças, a gente se esquece do doente, como foi o processo de adoecimento”,

Entre as  obras utilizadas estão A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, e A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver, de Ana Claudia Quintana. Segundo David,  Ainda Estou Aqui, em evidência por causa da adaptação para o cinema  serviu de gancho para falar de traumatismo da medula condição que afetou o  autor do livro Marcelo Rubens Paiva.

Ana e David participaram do livro Literatura e Saúde – diálogos sobre o cuidado, organizado pela médica Eloisa Grossman e lançado em 2024  com resenhas de 36 contos brasileiros, famosos e inéditos, que abordam temas como  envelhecimento, sexualidade e saúde mental.

O rótulo ficção de cura é novo mas a função terapêutica  da literatura existe há séculos e o  processo, ao invés de suave como proposto pelo gênero pode, às vezes,  vir de um impacto profundo como uma incisão cirúrgica conforme propõe Franz Kafka: “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós.”

 

 

Kleber Oliveira

para AELRJ

14/02/2024