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As livrarias do Século XXI

 

“São uma festa”  foi  a descrição usada em um encontro de livreiros em São Paulo. No Brasil, no entanto, elas enfrentam novos desafios, como  a concorrência desleal, que ganhou mais um player de ambições monopolistas  para rivalizar com  a Amazon: o site Mercado Livre.

 


A mais recente unidade da rede Livraria da Travessa inaugurada no Centro do Rio

 

Além das livrarias independentes recém-inauguradas, as principais redes do país estão se expandindo: este ano, a Leitura inaugura uma nova loja em São Paulo, a Livraria da Travessa outra em Porto Alegre e a Livraria da Vila terá nova unidade em Jundiaí e outra em São Paulo.

A Martins Fontes da Paulista, considerada por muitos como a melhor livraria do Brasil desde o fechamento da Livraria Cultura, em 2024, na mesma avenida, não tem tendências expansionistas,  mas também cresce, segundo o livreiro e editor Alexandre Martins Fontes.

“Ela vende dez vezes mais do que há vinte anos, quando assumi”, disse ele no debate com Rui Campos, da Livraria da Travessa,  e Samuel  Seibel, da Livraria da Vila, nesta terça-feira, 25, mediado pelo advogado Pierre Moreau no auditório da sua empresa,  na capital paulista.

Alexandre, presidente da Associação Nacional de Livrarias, relatou que, no exterior,  tem visto livrarias lotadas. Elas vão bem, segundo ele:  “são uma festa”. No Brasil, no entanto,  necessitam  da regulação presente em vários países, que aqui  tramita no Congresso sob o nome de Lei Cortez  para protegê-las dos monopólios.

“Não é uma lei de esquerda ou de direita; ela protege o ecossistema do livro e cria mecanismos para que ele funcione de maneira saudável”, disse Alexandre. Na Espanha,  uma lei similar entrou em vigor nos anos 70, durante o governo de extrema direita do General Franco , e na França, nos anos 80, sob o governo socialista de François Mitterrand.

“Essas sociedades, muito antes da internet,  entenderam o perigo que o livro corre quando o assunto é monopólio”,  disse ele. A entrada  recente do site Mercado Livre na venda direta de livros ao consumidor é a nova ameaça a um ecossistema já devastado pela Amazon.

Criado na Argentina em 1999, o Mercado Livre, que opera em outros 13 países da América Latina e se expande para a Europa, chegou ao Brasil naquele ano,  onde é a maior plataforma de e-commerce em número de usuários e volume de negócios, à frente da Amazon e do Magazine Luiza.

“O Mercado Livre é poderosíssimo, tem um trabalho muito eficiente”, disse Rui Campos, da Livraria da Travessa.  “Os descontos  nos livros são em torno de 40% a 50%. Estão indo pelo mesmo caminho da Amazon, querem seus dados para criar um cadastro. É desastroso para o mercado, e, se continuar,  as livrarias vão desaparecer.”

“Concorrentes predatórios  como a Amazon e o Mercado Livre, pressionam as editoras por descontos maiores.” disse Samuel   Seibel.   “Sabendo que terão de dar descontos para as grandes plataformas as editoras aumentam o preço de capa do livro para, no final, chegarem ao preço que querem vender.”

“Nos países em que não existe a lei, o livro é mais caro do que naqueles em  que ela existe como Alemanha e França”, disse Alexandre. “Nos Estados Unidos, onde a lei não existe, a Amazon tem 50% do mercado. Isso já é um monopólio estabelecido,  enquanto na Alemanha ela tem 18% do mercado e os editores se preocupam, acham  que já é um percentual alto.”

Os livreiros têm conversado com os parlamentares para esclarecer sobre o projeto de  lei no Congresso. O senador Hamilton Mourão havia se pronunciado contra a proposta; se declarou  a favor da livre concorrência,  e  apresentou uma emenda contrária ao texto da lei.

Depois de uma conversa de horas, em Brasília,  com Samuel Seibel, o parlamentar mudou de ideia e, no dia seguinte, retirou a emenda. “Também somos a favor da livre concorrência” disse Seibel,” mas gostaríamos que nesse jogo houvesse um mínimo de equilíbrio”.

Os livreiros também conversam com a imprensa que, em alguns casos, se mostrou contra a lei: ” Para minha tristeza,  a Folha de São Paulo fez um editorial contra.  Por isso, estive lá explicando a alguns jornalistas e editores o que é a lei”, disse Alexandre.

Para  Samuel, as matérias na imprensa contra o projeto são uma possibilidade de jogar um pouco de luz sobre o assunto: ” O jornalista vai ponderar. Fora a questão dos dados errados que aparecem nesses artigos. A pessoa não está mentindo, está desinformada.”

Para Alexandre o fato de sites como o da revista  Veja usarem abaixo de cada título da lista de mais vendidos um link para a compra do livro na Amazon não caracteriza uma maldade. Segundo ele, as livrarias brasileiras ainda não se adequaram tecnologicamente a essa parceria: “ A Amazon simplesmente chegou primeiro”.

“Há um programa que dá ao site uma porcentagem sobre a venda por meio do link e, no Brasil, nem todas livrarias tem essa tecnologia ,” diz ele. “ No The New York Times,  abaixo de um artigo sobre um livro, há links de vários locais para compra, não só para a Amazon. Estou trabalhando para que o nosso site tenha esse programa junto à Veja, à Folha, ao Estado.”

Apesar de famosa por gastar milhões em lobbies junto aos parlamentares na defesa de seus interesses, Alexandre  acredita que a Amazon não está preocupada com a Lei Cortez já que poderá continuar com descontos predatórios em grande parte dos livros do mercado.

Segundo a lei, apenas lançamentos não poderão ter descontos acima de dez por cento no primeiro ano de venda o que equivale a apenas 6% dos livros no mercado que, no Brasil,  representam uma média de 13 mil títulos  por ano.

Esses lançamentos  dão fôlego às livrarias para manterem no acervo livros que vendem  um ou dois exemplares por ano, mas que fortalecem o importante papel delas na cultura. “Esse livro que só vende uma vez por ano, fundamental para determinada pessoa que procura conhecimento sobre um assunto, está lá porque será financiado pela venda de uma novidade como o lançamento da Carla Madeira”, diz Rui Campos.

Segundo ele, “ a Lei Cortez vai  impedir que essas empresas oportunistas usem  o  lançamento como isca para o seu negócio e tirem a sustentabilidade de um comércio   essencial  para a transmissão cultural”.

“Uma cidade sem livrarias pode até se considerar  uma cidade,  mas ela sabe que não está enganando ninguém.”  A frase do escritor inglês Neil Gaiman foi citada por Alexandre Martins Fontes  ao afirmar que um  dos grandes desafios  do mercado é que haja mais livrarias nas cidades brasileiras.

“Capitais como Rio, São Paulo e Belo Horizonte têm um número razoável de livrarias mas em muitas cidades não há e é na livraria que o encontro e o desejo pelo livro acontece. Uma livraria perto de casa potencializa o leitor e o comprador de livros.”, disse Rui Campos.

“Durante muitos anos as livrarias das pequenas cidades viviam da venda de livros didáticos e da compra pelas bibliotecas.” disse ele. “Houve um desserviço que fez com que as escolas vendam direto para os alunos e tirem deles a possibilidade de frequentar livrarias, como fiz na minha vida de estudante.”

Com a venda dos didáticos pelas editoras nas escolas muitas livrarias acabaram. As compras governamentais de livros para distribuição nas escolas, algo que sustenta o mercado, também não passa pelas livrarias, o que, segundo Rui é fácil de reverter. Para Alexandre Martins Fontes há muitas lutas que os livreiros querem enfrentar além da aprovação da Lei Cortez.

“As livrarias deveriam ser isentas de IPTU”, disse ele. “No Canadá há uma lei que estabelece que a biblioteca de um bairro deve comprar livros na livraria do mesmo bairro. O mesmo acontece na França. Há muita coisa que pode ser feita para a valorização da livraria e, consequentemente, da indústria editorial.”

A proibição de aparelhos celulares pelo governo nas escolas foi um exemplo de mudanças práticas. Alexandre lembrou que na Escandinavia o livro físico havia sido totalmente substituído pelo digital mas há dois anos o governo voltou atrás: “ Perceberam que as crianças ficam mais focadas no livro físico que no digital. Acho que no Brasil vai haver um fenômeno semelhante.”

Aqui, o e-book não decolou e ocupa de 5% a 6% do mercado. Embora toda a produção editorial esteja digitalizada, do uso do computador pelo  autor à elaboração da capa, a chegada  do livro físico da gráfica sempre gera emoção, segundo Alexandre: ”É como um pai ver o filho que vai nascer pela ultrassonografia e depois segurá-lo nos braços.”

Samuel Seibel disse que as novas gerações têm surpreendido com a adesão ao livro: “As Bienais estão superlotadas. O TikTok colaborou muito com isso, promove leituras. Mostra a valorização de um produto que poderia ser questionado com tanta concorrência eletrônica.”

No caminho oposto, sites monopolistas como a Amazon e o Mercado Livro desvalorizam o livro, vendido a preços abaixo do mercado para atrair clientes e recuperam a perda financeira em outros ítens: “Você não vai encontrar essa política de preços em  outros produtos, como geladeira e telefone”, lembrou Samuel.

“O livro é sagrado” disse Rui Campos. “ Há um arcabouço fiscal que contempla esse objeto, que está isento de impostos. Livro é cultura, cultura é algo para ser cultivado.” Segundo ele, todo livro tem seu valor, seja o best-seller de saída rápida ou aquele vendido uma vez ao ano.

Rui lembrou que a Lei Lang, instituída na França há 44 anos, que inspirou  a Lei Cortez e preserva a bibliodiversidade do mercado editorial naquele país, começa com uma frase emblemática: “O livro não é um objeto como outro qualquer.”

 

Kleber Oliveira

para AELRJ

28/02/2025