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A saga dos quadrinhos
Eles conquistaram espaço como literatura; Maurício de Souza, da Turma da Mônica, é o terceiro autor mais lido no país. Das bancas de jornais migraram para as livrarias e a produção nacional ganhou destaque em formatos como o mangá, vindo do Japão. Contos dos Orixás, de Hugo Canuto, sucesso com a mitologia afro-brasileira no formato HQ
“Minha mãe era professora e aprendi a ler com revistas da Luluzinha, Pimentinha e Mandrake”, afirma o livreiro Thales de Carvalho sobre a importância desse formato de leitura que já foi alvo do preconceito de educadores. Ele é da Metrópolis, mais antiga livraria de HQs do Rio - fundada em 1999, no Méier. Desde 2017, a categoria de melhor HQ do ano faz parte de um dos prêmios mais prestigiados da literatura nacional, o Jabuti. Em 2024 a vencedora foi Como Pedra , de Luckas Lohanatthan, do Rio Grande do Norte, com a história de um casal que, na seca do Nordeste, luta contra a fome com uma filha cadeirante. Thales destaca a presença dos quadrinhos nas escolas com outro ganhador do Jabuti, em 2019: Jeremias - Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa. O texto, usado em sala de aula, reinterpreta a história em que Jeremias, primeiro personagem negro criado por Maurício de Souza, sofre a experiência do preconceito racial. Outra obra que ultrapassou o nicho dos quadrinhos, segundo Thales, é Contos dos Orixás, de Hugo Canuto, que adaptou para o formato mitos afro-brasileiros e inclui glossário com palavras no idioma yorubá. Lançado em 2019, foi sucesso de vendas e ganhou edição nos Estados Unidos. Ali, o renomado Prêmio Pulitzer também se abriu para os quadrinhos; em 1992 consagrou pela primeira vez uma obra do gênero: Maus , do norte-americano Art Spiegelman, aclamada pela profundidade emocional e abordagem inovadora sobre o Holocausto nazista na Segunda Guerra Mundial . Em 2022, o banimento de Maus em uma escola nos EUA alçou a obra aos primeiros lugares da lista de mais vendidos no país. No Rio, algo semelhante ocorreu quando o Prefeito Marcelo Crivella tentou censurar Vingadores, a Cruzada das Crianças, na Bienal do Livro, em 2019, por causa de um beijo homoafetivo na capa. A edição, que segundo Thales já era antiga, esgotou rapidamente. “O que mais tem são mangás com histórias gays, seja do sexo masculino ou feminino” afirma ele. Mangá é o nome das HQs no Japão, adotado também no ocidente para as produções vindas de lá. Hoje, junto com os heróis da Marvel e da DC Comics são as HQs estrangeiras mais vendidas no país. Artistas nacionais aderiram à estética dos mangás e o brasileiro Hiro Kawahara está no Japão para receber o prêmio principal do 18º International Manga Award, conquistado com a HQ A sereia da floresta, que venceu outros 716 inscritos de 96 países. O mangá é uma novidade na Livraria da Travessa, diz Carolina Dreyfuss, responsável pelo setor de compras da rede: “Passamos a ter há uns três anos porque as editoras operam uma venda diferente do tipo a que estamos acostumados na literatura. Tivemos de fazer muitas negociações.” “A aceitação é surpreendente”, diz, “ficamos em choque com o volume de vendas muito rápido. É um público fiel que volta em busca de novidades.” Segundo Carolina entre os livreiros da Travessa há muitos mangazeiros: “Eles já pediam, diziam que é algo que tínhamos de ter.” Até o final da década de 80 o mercado de quadrinhos no Brasil foi dominado pelas revistas de Walt Disney, da Editora Abril. A primeira, Mickey, foi lançada com grande sucesso em 1950. Depois, vieram outras como Pato Donald, Tio Patinhas e Zé Carioca. Mauricio de Souza lançou sua primeira revista, A Turma da Mônica, em 1970. A seguir vieram publicações para cada personagem como Mônica, Cebolinha e Cascão. Nos anos 80 a editora Abril investiu pesado nessas histórias que dominaram o mercado nacional a partir dos anos 90. “Aprendi a ler com a Revista da Mônica”, diz Carolina. ”Minha mãe conta que quando perguntava qual a minha comida preferida eu dizia: pão de queijo e revistinha. O pão de queijo só não bastava.” “Hoje, Disney não tem comparação com Maurício de Souza”, afirma a livreira, “não chega aos pés. As coletâneas O melhor de Mônica, O melhor de Cebolinha vendem que nem água. Já coloquei coisas do Disney para ver se pegava o lado afetivo das pessoas.” Segundo ela, o que mais sai nas livrarias são edições no formato livro, coletâneas com capa dura. “As revistas são um produto muito delicado que danifica facilmente e a distribuição era voltada para as bancas de jornais com um sistema que não conseguíamos acompanhar, havia muitos problemas de pagamento.” As coletâneas reúnem as histórias publicadas previamente em revistas, mas há edições especiais no formato livro como as Graphic MSP com releituras dos personagens da Turma da Mônica feitas ao estilo de diferentes artistas brasileiros que, segundo Carolina, também vendem muito. Ela cita Jeremias – Pele, ganhador do Jabuti e Tina – Respeito, de Fefê Torquato, com a personagem que surgiu em 1982 na revista Mônica, como uma jovem moderna e antenada que, no romance gráfico, é uma jornalista recém-formada às voltas com assédio moral em uma redação. Maurício de Souza está em terceiro lugar entre os autores preferidos dos brasileiros, atrás de Machado de Assis, em primeiro, e Monteiro Lobato, em segundo, de acordo com a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, divulgada em 2024, que ouviu 5 500 pessoas em 208 municípios, Com 90 anos, ele não dá mais entrevistas, segundo sua assessoria de imprensa. Mas, em 2017 foi a atração principal da 27ª Convenção Nacional de Livrarias, no Rio, onde simpático, posou para fotos e fez um relato da carreira nos quadrinhos, que começou em 1959 com a tira do cão Bidu, no jornal Folha de São Paulo. Na Convenção, disse que sua editora detinha 85% do mercado nacional de HQs. Hoje os produtos da Turma da Mônica e derivados são distribuídos pela editora Panini, que comprou os direitos da Abril.Ela começou na Itália, em 1961, com álbuns de figurinhas e veio para o Brasil em 1994. Também publica os heróis da Marvel, da DC Comics, mangás, como os clássicos Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco e se tornou a maior editora de HQs do país. Em 2024, inaugurou duas lojas no estado do Rio, uma em Niterói e outra na Barra da Tijuca, Zona Oeste da capital, onde, além das novidades do extenso acervo, tem os álbuns de figurinhas, com destaque para as que retratam jogadores de futebol, e bonecos de ação chamados Funko Pops . As revistas de HQs se popularizaram com o nome gibi por causa da publicação, de grande sucesso, lançada pela Editora Globo em 1939: Gibi. O termo, de conotações racistas, remetia a moleque ou negrinho, mas, na revista, homenageava os garotos que vendiam jornais pelas ruas; a caricatura de um deles vinha no topo da capa de cada edição. A Gibi veio para rivalizar com a Guri e trouxe uma grande variedade de quadrinhos estrangeiros distribuídos por sindicatos; iam do Pato Donald a Flash Gordon, Brucutu, Popeye, Namor e Tocha Humana. Com o advento da internet e a migração da mídia impressa para o meio virtual as revistas em quadrinhos perderam o seu principal canal de vendas, as bancas de jornais que, na maior parte optaram por outras formas de comércio, como bomboniere. Enquanto as livrarias optam pela edições especiais com capa dura os sebos se tornam o reduto dos quadrinhos. “O acervo é flutuante”, diz Julio Cesar Garcia, do Letra Viva, no Centro: “depende da oferta de colecionadores.” O Letra Viva promove leilões virtuais de HQs acessados, segundo ele, por dois públicos; um mais maduro que busca resgatar memórias da infância, e outro formado por leitores e colecionadores. O ítem com maior preço nesses leilões, acima de R$ 10 mil, foi o suplemento Gazetinha, anexo da Gazeta de São Paulo, que trouxe pela segunda vez, em 1940 uma história do Super-Homem, personagem que chegou aqui depois de outros como Fantasma e Mandrake. Revistas da Mônica, da década de 70, publicadas pela Abril, podem chegar a mil reais, afirma ele. Entre os nacionais, a procura também é grande por revistas de terror como Spectro, Histórias Reais de Drácula, Mestres do Terror e Calafrio. Para Julio, a produção nacional ganhou a partir de 2010, a relevância que tinha entre as décadas de 70 e 80, principalmente por causa de plataformas para a publicação com financiamento coletivo como a Catarse o que, segundo ele, dá ao autor total controle sobre sua obra. Thales, da Metrópolis, que completa 30 anos – antes do Méier funcionou a partir de 1995 em Jacarepaguá - diz que costuma colaborar com projetos de HQ na Catarse, mas reclama dos altos preços das publicações nacionais, obrigadas a cobrar mais devido a tiragem menor. Os mangás já foram o forte da Metrópolis, mas com a alta dos preços ele revende usados. “ Queria que as editoras dessem uma segurada nos preços. O leitor passa a ler na internet embora o interesse seja de ter o exemplar físico” diz. O livreiro no entanto, elogia a Panini, que, segundo ele resistiu à Amazon e não deu os descontos que ela pede para vender mais barato na internet. “Com isso, há pouca coisa dela na Amazon e com os preços de mercado.” No universo das HQs a Lei Cortez também é aguardada e Thales prevê: “Tenho certeza que o preço das histórias em quadrinhos vai cair, como aconteceu em outros países em que ela foi adotada.”
Kleber Oliveira para AELRJ 21/03/2025 |