Imprimir

 

Bebendo nas livrarias


Artista multimídia consagrado por músicas como Rio 40 graus e Katia Flávia - a Godiva de Irajá, Fausto Fawcett se diz  leitor profissional que tem nas livrarias uma das fontes  prediletas e na escrita a base de sua produção artística, que inclui 5 livros.

No Brasil  ele foi precursor do Rap – do inglês Rythm and Poetry, longas letras faladas sobre bases rítmicas – e, em 1987,  o primeiro a colocar o gênero nas paradas de sucesso nacionais com Katia Flávia – a Godiva de Irajá, interpretada com o grupo Robôs Efêmeros.

Em 1992 retorna às paradas com Rio 40 Graus, Rap sobre a “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”, interpretado por Fernanda Abreu,   com pequena participação dele, autor da letra, nos vocais.

No ano 2000, pesquisa com milhares de cariocas no jornal RJ TV, da TV Globo, elegeu Rio 40 graus a segunda música mais representativa do Rio de Janeiro; atrás de Cidade Maravilhosa, de André Filho, e à frente de Samba do avião, de Tom Jobim.

Como escritor, Fausto vivencia o discreto charme da literatura cult com livros de tiragem mediana, mas de repercussão, inclusive nos meios acadêmicos, onde geraram  teses sobre  o gênero em que se notabilizou, uma versão nacional  do cyberpunk,.

Favelost, seu livro de maior vendagem , lançado em 2012 pela  Martins Fontes, se passa em futuro próximo numa comunidade que se alastrou entre o eixo Rio-São Paulo  e tem no título a junção dos termos favela e Lost, nome do seriado de televisão norte americano de sucesso na época.

Verborrágico na música e na literatura Fausto foi comparado pelo cineasta Cacá Diegues a um Guimarâes Rosa urbano e a atriz Regina Casé, o exalta como um dos novos talentos da literatura nacional ao falar um trecho de Favelost em  sua última peça, O recital da onça, de 2019.

Nascido Fausto Borel Cardoso, no Rio , em 1957,  ele adotou o nome Fawcett em homenagem à atriz Farrah Fawcett, do seriado norte americano As panteras, uma de suas várias musas louras, ícone midiático dos anos 70.

Em 1992, o  show Básico Instinto, que gerou o  seu terceiro LP com o mesmo nome, alçou à fama as backing vocals louras Marinara e Regininha Poltergeist. Em 2006 montou a peça Cidade Vampira inspirada na também loura Suzane Von Richthofen condenada pelo assassinato dos pais em São Paulo em 2002.

Outra presença recorrente em sua obra é Copacabana, não a Princesinha do Mar,  famosa mundo afora, mas a do asfalto onde o sangue azul corre  misturado  aos vários outros tipos, preferivelmente em cenários noturnos.

Como ator, Fausto estrelou o longa metragem O vampiro carioca que é também o nome de  uma série com vários episódios curtos veiculada pelo Canal Brasil e também protagonizada por ele. Hoje, abstêmio, Fausto não  frequenta  as madrugadas de Copacabana mas a noite  ainda é o seu horário de trabalho.

Para ele, o ofício de escritor é a base de toda a sua obra onde há novos projetos musicais, inclusive um  disco com o seu grupo Robôs Efêmeros, e dois novos livros: Cachorrada Doentia e Lourinha levada, este um infantil “para crianças adultas”.

Vacinado, mas mantendo o distanciamento,  Fausto Fawcett conversou com o site da AEL RJ de seu apartamento em Copacabana pelo Zoom .

 


Sua ideia de futuro é de aglomeração, como viu o vazio provocado pela pandemia?

Foi um desencontro total. Sempre gostei e valorizei o tumulto. Mas na verdade, antes da pandemia, o Eduardo Paes já havia acabado com o Centro do Rio. Eu adorava aquela vitalidade, trânsito caótico. Os três lugares que adorava justamente por isso eram Copacabana, o Centro e Madureira. Fazia esse circuito  bebendo; começava em Copa, ia para o Centro, na Rua São José, e depois Mercadão de Madureira, lá no fundo entre potes, aves e lojas de macumba.  O VLT com aquela sinetinha fazendo blén, blén, blén é vergonhoso. Parece uma ovelha dirigindo aquele negócio. Era para ser um boulevard, mas simplesmente não aconteceu, esvaziou. Em, Copa o vazio aconteceu no começo da pandemia, em março, porque depois em abril voltou a bombar. No começo parecia filme de ficção cientifica dos anos 70, aqueles faroestes de cidade abandonada. Mas também era legal. Gosto mais do tumulto, acho mais sufocante, claustrofóbico mas gostei dessa onda de cidade fantasma, pós- bomba de nêutrons. Faltou chover direto três semanas, nuvens cinzas, ia ficar perfeito. Claro que é uma peste horrível, mas esteticamente foi interessante.

Por que se define como um leitor profissional?

É como a bebida: um diz “bebo socialmente” e o outro “ eu bebo profissionalmente”. Trabalho com escrita e não há como não ser um leitor profissional, além de ter a patologia. O Drummond dizia: “leio tudo, até bula de remédio”. É preciso estar atento, ligado à atualidade e ao link dela com a tradição, tanto religiosa quanto secular. Leio profissionalmente porque não paro de estudar. Acompanho os autores, o que acontece com o estilo deles, os conteúdos. Gosto de filosofia, de ensaios, de textos científicos, tudo. Aprendi a ler aos 6 anos com uma tia, Marli. No começo eram histórias em quadrinhos,  fábulas, contos de fadas e o Google da época, o Tesouro da Juventude, uma coleção que hoje as pessoas não têm ideia do que seja. Alí havia clássicos resumidos e, sem ter a menor vivência para entender, li Dom Quixote, Fausto, do Goethe. Nessa época meus pais estavam exilados no Leblon e, quando foram para Copacabana, em 64, me desliguei da leitura; o negócio era futebol, rua. Depois aos 14 anos voltei a me interessar por literatura e decidi que, com certeza, ia trabalhar com algo relacionado a isso. Ao mesmo tempo entrou o rock and roll, a cultura pop, discos, cinema. Sendo de classe média eu tinha tempo para isso. E dei uma surtada, não parava de ler; Flores do Mal, do Baudelaire; Aldous Huxley, um dos meus preferidos, principalmente o Admirável mundo novo; Os demônios de Loudun, sobre possessão em um convento na França; outro sensacional, que é um compêndio chamado A filosofia perene, com todos os ítens sobre religião e vários místicismos; e As portas da percepção. Também tinha aquela literatura da época chamada de literatura do desbunde, ou underground; era o Catatau, do Paulo Leminski; Fragmentos de sabonete, do Jorge Mautner;  Me segura que eu vou dar um troço, do Wally Salomão; Alegria, alegria, do Caetano Veloso; e os livros do Luiz Carlos Maciel, que eu adorava: Nova consciência. Teve A laranja mecânica, que para mim foi um livro absurdo, cabeça de chave, pela linguagem, pela surpresa; o personagem é um delinquente de uma Inglaterra futurista.

E você, foi usuário de outras drogas além do álcool?

Meu negócio é só álcool. Estou mais para aquele personagem do Asterix que caiu de cabeça dentro do líquido lisérgico e a viagem tá rolando total. Minha droga mesmo era o álcool, uma droga depressiva. É bar...bitúrico. Começa como uma anfetamina, mas não é. A principal sabedoria que o álcool me trouxe foi uma endoscopia para saber se o estômago estava bom. Passei um tempo da vida vomitando ao levantar, cuspindo sangue. No meu caso a sabedoria do álcool rimou com endoscopia e ultrassonografia. Mas fora a brincadeira tinha uma coisa de observação; porque ele me fazia ir a campo, ficar no bar. Meu point era o Cervantes, um bar- restaurante classe média, mas na Prado Júnior, rua com concentração de boates, inferninhos, um submundo ao lado da classe média de Copacabana. Além da imaginação é preciso ter uma capacidade de observação, tara antropológica, etnográfica.  A trincheira é o balcão do bar. Existem bares muito homogêneos na frequência; o bar do artista, o bar do oftalmologista ou do jornalista, onde o mesmo tipo de gente se encontra sempre. Já  no Cervantes ia todo mundo, gente rica, pobre, prostitutas, marginais variados que estavam com uma grana e passavam para tomar um chope . Era interessantíssimo; você conversava com um desembargador, ele  doidão  falava dos bastidores do judiciário. Tinha todo tipo de profissional que revelava segredos da profissão misturados com aspectos da vida. A bebida  é a droga social por excelência, claro que depois que você bebe demais fica antissocial, patético, sentimentalóide, agressivo, ou apaga.

Seu processo de escrita é flúido, ou reescreve muito?

Há uma certa demora. Fico fazendo anotações, pensando, e às vezes até perco prazos. Fico ruminando os assuntos para depois escrever. Mas assim como no jornalismo, tem essa coisa de prazo e, mesmo que saia mais ou menos, não interessa, embola seus pensamentos, informações e manda ver. Às vezes, pensar demais é meio nocivo, procrastinar, passar a mão na própria cabeça: "então deixa para amanhã". Há um grande prazer no pensamento, na contemplação: "não preciso escrever, já estou aqui pensando". Você esquece que tem de entregar o texto, mas na verdade também está trabalhando, está elaborando algo e não é uma preguiça. Então, não tem nada de espontâneo; monto blocos de texto, blocos de pensamento e faço um link para aquilo ter um certo sentido. Como um amigo definiu, trabalho mais com romances de ideias, não são mergulhos em psicologias. Gosto mais do épico, de  narrar e colocar os bifes nas bocas dos personagens. Novamente o Aldous Huxley é a minha grande referência ele disse: "os personagens são manipuláveis, eles encarnam certas ideias". De certa forma, às vezes, eles  não são nem muito humanos, são fundamentalistas. Tem aquela coisa do Fla - Flu entre os dois GRs - Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.O Graciliano Ramos tem aquela frase maravilhosa; "o texto tem de ser igual à roupa de lavadeira", você bate, bate, tira os excessos até não ter mais o que tirar. Todo mundo adora ele, os jornalistas, e se for ferino, sarcástico, bater na humanidade. Eu também acho ótimo. O Guimarães Rosa é o contrário; esticar a corda até não dar mais. A onda é botar mais palavras e isso vira quase como um mantra. Ele é da estirpe de James Joyce, do Apocalipse de São João, do Cortazar. Vamos pegar tudo o que puder, como se fosse um Exu engolidor, um contador geiger que vai procurando tudo, uma arca de Noé, um dillúvio. O Graciliano Ramos é o controle, botar rédeas para chegar a um sentimento, a uma essência. Para mim há um empate técnico entre os dois.

Qual dos seus livros indica a quem quer se iniciar em sua obra?

São dois; o Favelost e o Santa Clara Poltersgeist. E  quero ver se fecho essa trilogia com Cachorrada doentia, que não sei se terá esse título. Eles têm em comum um enredo delirante, com uma linguagem  também delirante, com neologismo, etc. Funciona assim para mim e gosto disso em outros autores. No Santa Clara existe uma falha magnética em Copacabana com uma passagem entre o mundo real e o surreal. Foi como se transformasse Copacabana em um laboratório com assuntos que têm a ver com os anos 70 e 80, um a mistura das revistas Super Interessante e Planeta. A protagonista é uma prostituta. É também uma vingança pelo fato do Brasil ser um país fudido sem  um grande protagonismo. Um vira-lata complexo com ilhas de excelência cercadas por oceanos de incompetência, temperamentos escravocratas. No livro, Copacabana virou o centro do mundo, com cientistas vindo pesquisar  esse fenômeno da falha magnética. No Favelost você encontra um cenário similar ao do Santa Clara Poltergeist, ou seja, um território brasileiro transformado em laboratório alucinante. Dois agentes de uma firma  chamada Intensidade  Vital - que  oferece serviços de reciclagem de vida  para quem tem mais de 50 anos - atuam como capitães do mato de um lugar chamado Favelost que existe entre Rio e São Paulo. Alí há um capitalismo exarcebado, aceleração em  termos de tudo o que vivemos de consumo. É uma Serra Pelada elevada ao enésimo grau.  Uma favela medieval cheia de tecnologias bizarras.

Concorda com o rótulo de cyberpunk  para a sua literatura?

Aceito porque  acaba sendo inevitável fazer essa ligação. Mas eu nem conhecia o William Gibson. Na verdade estava completamente atrasadão em relação a literatura cyberpunk quando fiz o Santa Clara Poltergeist que é de 90. Neuromancer, o livro mais famoso dele, é de 84, se não me engano. Foi o Hermano Vianna que me abasteceu com informações sobre isso. O território do Neuromancer é cyberpunk porque há uma deliquência, uma turma meio jogada fora, socialmente excluída, com acesso a uma certa tecnologia, que resolve se entregar a uma vida virtual. A ligação pode ser total , só que no Brasil temos essa tecnologia de gambiarra com outros elementos. Lá existem as grandes corporações dominando. Lá é um Blade Runner e aqui um Brega Runner.

Conhece autores com sua característica de repetir o texto como um refrão?

Não. O refrão tem a ver com a música mas há um outro aspecto, alí tem o rítmo. Nos textos do James Joyce e Guimarães Rosa o rítmo é mais intenso que o do Graciliano Ramos. No Guimarães Rosa é jazz e também tem uma verve muito contundente. Há textos religiosos que são muito assim também. Não há só o excesso verborrágico, há uma entonação, uma verve muito positiva. Há um certo delírio que na literatura é ótimo, é a base. Não é no sentido clínico psiquiátrico como um descolamento pois um está criando um universo - o literário - e outro está sendo engolido pela realidade - o clínico, esquizofrênico. Mas os  autores também têm refrões dos assuntos. Uso o refrão para enfatizar, como Nelson Rodrigues  que dizia : "tem que repetir, a repetição é um fator muito importante”. Uma coisa é você repetir palavras, porque aí demonstra falta de recursos. Outra coisa é você ter os seus refrões, que de três em três páginas você utiliza para entronizar  algum tipo de conceito.

Qual a sua relação hoje  com as livrarias?

É um ambiente que  adoro. Dependendo do bairro e do meu tempo,  visito duas ou três no mesmo dia. Na verdade preciso delas, é o meu alimento. Não tenho segredo quanto a isso. Assim como também tenho de ir ao cinema e a todas as pistas de artes cênicas, audiovisual, filosofia; pistas humanistas. Para mim, elas são meio que um templo onde você vai rezar; pega vários textos para dar uma rezada rápida. É uma coisa que sempre fiz e me ajudou muito na música com o Rap. Eu ia para a livraria, não queria comprar o livro todo e decorava algumas páginas, trechos. Ia duas ou três vezes na semana e decorava um capítulo, saia da livraria repetindo aquele negócio. Me ajudou muito. Há livrarias para tudo, são ambientes maravilhosos. Eu gostava muito muito, da Leonardo da Vinci, da antiga. Era como ir na Modern Sound, a loja de discos em Copacabana, onde havia artigos importados. Com a internet a coisa de importados deu uma banalizada. Antes você tinha de curtir o livro, que era caro prá caramba, tinha de juntar uma grana. E tinha a ambientação, a livraria no subsolo, com um pé sujo do lado. Gosto muito da Travessa, que é o oposto.  Ela começou como Muro, em Ipanema, em, frente à General Osório, no subsolo de um shopping center; virou Dazibao, lá perto de onde está hoje,  também em Ipanema.  A do Leblon gosto muito, porque é grande; quando vejo estou há uma hora naquele lugar. Também gosto da Blooks, onde tem os cinemas em Botafogo; o lance de descobrir publicações, e nela sempre acho alguma coisa. Porque nas outras, mesmo na Travessa, primeiro você tem de enfrentar aquela bancada de aeroporto, com a autoajuda, os sucessos. Depois vai se aprofundando, fazendo a garimpagem, que é o prazer de estar em uma livraria. A princípio me lembro dessas três, mas tem também os sebos que deixei de frequentar por causa da minha alergia à poeira. No Centro tem muitos na região da Praça Tiradentes onde ia muito. Fui muito na Baratos da Ribeiro, em Copa, na Rua  Barata Ribeiro, agora está em Botafogo. Lugar bacana de encontros e atividades, além da boa e velha oferta de raridades. Também em Copacabana, por volta de 71, 73,  tinha a Carlitos, principalmente com literatura francesa que era um oásis. Em plena ditadura você tinha aquela livraria, mas como era tudo em francês os caras não entendiam nada. Mas havia livros em português também. Tinha a Editora Ground, em Copacabana, com nossos queridos livros da contracultura, maravilhosos.

A digitalização afetou a música de forma diferente que o livro?

Na música  foi de forma mais radical. Desde a década de 70 havia tecnologia e  máquinas influenciando a sensibilidade musical; como o dub, na Jamaica, sobrepondo camadas de som. A digitalização aumentou a interação. Antes havia as gravadoras, o artista ia gravar e tinha várias  "babás" para cuidar dele, da divulgação. A gravadora era uma espécie de Banco do Brasil, em termos de estabilidade; quando se conseguia entrar numa era: "oh meu Deus, que beleza!" Agora, com a força da digitalização, aparelhos portáteis, as pessoas fazem estúdios em casa e produzem com alguma qualidade. Com as redes sociais fazem também a própria publicidade, ou o vídeo, trabalham prá cacete. Com isso a coisa ficou dispersa e gigantesca. Tanto o superficial quanto o bom foram engolidos. Ter um grande sucesso que todo mundo ouve ficou muito difícil. Precisa acessar a internet e ver as visualizações para saber que aquilo é um sucesso. No mercado editorial isso não mudou tanto mas também há novos aspectos. As editoras estão bastante ideológicas, tem de haver alguma coisa de periferia, identitária, ou ecológica,  para ter o seu privilégio, principalmente na maior editora do país, a Companhia das Letras. Também tem a coisa das redes sociais; "quantos seguidores você tem?". É importante ser influenciador, não importa de quê; influenciador de tênis, de maquiagem, de cutelaria. Conheço uma poeta em São Paulo contratada pela Companhia das Letras porque fez sucesso no Instagram. Realmente, com relação à música o mercado editorial mudou menos mas com novas peculiaridades. Ideologia, autoajuda é o que está mandando e nas redes sociais só dá isso.

Por que você não tem uma participação mais produtiva nas redes sociais?

A palavra é preguiça. Não tenho FaceBook, Twiter, porque tenho o reflexo de ler, de procurar, me informar, mas não o reflexo de postar. Tem gente que faz isso todo dia e adoro, admiro. Mas não consigo. As anotações que faço visam uma coisa longa, escrever um livro, bolar um espetáculo. Há também  um certo narcisismo com que não tenho saco. O cara põe :"oi, estou aqui comendo uma salada". O que interessa isso? Nós tirávamos fotografias só em ocasiões especiais, Hoje todo mundo virou repórter, entre aspas, e o mundo foi tomado por um amadorismo generalizado. Como complemento para o jornalismo, um paínel para estudo antropológico, psicológico é maravilhoso. As pessoas estão aí se expondo, expondo sua idiotice, boçalidade. Tem também a fofura, um negócio que me dá nervoso, fofopatas; "bom dia!". Eu recebo bronca toda hora por não estar nas redes sociais porque o mundo acontece alí. Teve a história do Mc Kevin que caiu da varanda do hotel na Barra; eu não o conhecia. Mas lendo as reportagens vi que tinha 10 milhões de seguidores. É um mundo à parte que você não vê na rua. Na época do rádio, todo mundo sabia, todos estavam expostos à comunicação. Tem essa coisa gigantesca acontecendo mais você tem de estar na internet ou não fica sabendo. Andando na rua você não vai saber. O celular virou uma espécie de terço que as pessoas ficam com ele todo o tempo na mão rezando.

Seu trabalho artístico começou pelo teatro?

Em 81 participei de um curso que  o Asdrúbal deu no Parque Lage para comemorar  sete anos de existência. Eles foram importantíssimos; faziam teatro, mas, como usavam uma linguagem próxima da juventude, eram vistos não como um grupo de teatro, mas de rock. No curso conheci o Laufer, o Sérgio Mekler, que eram da mesma turma. Mas foi na PUC  que fiz minhas primeiras experiências, comecei a estruturar uma ideia de trabalho. Fui para lá em 77 fazer Comunicação por que jornalismo e publicidade tinham, na época, as duas pistas por onde passava a vida. O jornalismo dava um olhar crítico; prá começar você tinha de ir para a editoria de polícia,  para a geral, para o cotidiano, até seguir outros caminhos. A publicidade era uma camelotagem de luxo, mas tinha uma coisa interessante de trabalhar com desejos humanos, consumo, status e inventar desejos. Mas não trabalhei em jornal ou publicidade; era uma postura filosófica, fui para estudar e me inteirar dessas coisas. Na PUC aproveitava os horários mortos para ir para a  sala com os equipamentos de rádio. Ninguém usava e eu ficava lá, fazia rádio novela, colagens. Alí encontrei dois parceiros, o  José Thomaz Brum, que era tecladista e agora é filósofo, dá aula na PUC de Estética e Comunicação. Depois conheci o Marcelo de Alexandre, que também era tecladista. Com eles fiz a base, o primeiro núcleo dos Robôs Efêmeros. Depois veio o Laufer com o suingue, aquela mistura do violão dele que casou muito bem com minhas letras e falações. O começo foi então PUC e o curso do Asdrúbal onde vieram esses casamentos multimídia de música com literatura.

Trabalhar com o Thomas Brum influenciou seu gosto pelo filósofo Emil  Cioran?

O Thomas participou dos Robôs Efêmeros, mas no final dos anos 80 já estava dando aula e houve um distanciamento. Nessa época ele traduziu o Cioran, que eu não conhecia, nunca tinha lido nada. Mas, na medida em que ia traduzindo, devorei tudo, principalmente Breviário da Decomposição. Gostei muito daquela visão dura, mas ao mesmo tempo doce, do ser humano, com uma vertente  do que hoje em dia é considerada conservadora, reacionária por estar ligada à religião. Isso foi  meio varrido,  muito atacado; fica-se preocupado com a Igreja instituição, seu aspecto de poder. Místico virou caricatura, qualquer menininha da Barra diz que é new age.  Uma garota do BBB, outro dia, deu dica de livro sobre a filosofia tolteca. A autoajuda engoliu o lado místico, a neurociência, etc. São os 5 passos para isso,  mais um passo para aquilo, e por aí vai. Com a filosofia foi o mesmo; há vinte anos havia uns livros estapafúrdios como Nietzche e os Simpsons. Tem o aspecto filosófico e religioso do Cioran de nos colocar em nosso posto de insignificância em relação ao universo, aos acontecimentos da vida. Não temos tanta capacidade de domar a vida, o que é a grande proposta da autoajuda, mas principalmente da modernidade, como gostam de dizer os estudiosos. Com a pandemia a gente vê que nunca teremos isso. O nosso tapete vai ser sempre puxado, mas rapidinho vamos arrumar outro, que também será puxado uma hora.

Como as louras viraram musas na sua obra?

Quando tinha seis anos, morava no Leblon e nunca tinha visto uma garota technicolor. Num baile de carnaval me aparece uma garotinha loura, linda, vestida de chinesa. Pirei completamente com aqueles olhos azuis gigantes, a pele muito clara, cabelo bem douradinho e a roupa de chinesa.  Para mim aquilo foi uma iluminação que virou depois um fetiche. Claro que alí não saquei  isso e digo bem retrospectivamente. Mas foi a mais completa tradução do elemento musa: vai ser esse. Em 1977 a Farrah Facewtt virou um fenômeno de comunicação e à partir dela escrevi Logos Fawcett, ou seja, a mente Fawcett, a visão de mundo Fawcett veio a partir dela. Depois isso virou minha monografia de fim de curso, escrevi três vezes e acabou se chamando Robôs Efêmeros. Assim que comecei a usar os equipamentos na PUC em 79, 80 era esse o texto ligado ao que fazia. Jornalismo, publicidade, filosofando a partir da comunicação e depois misturando com os filósofos,  o pessoal do Novo Jornalismo,  Norman Mailer, Tom Wolfe, Luiz Carlos Maciel, jornalistas musicais como Ezequiel Neves.  A Farrah Fawcett foi um portal para falar de várias coisas. Nós éramos geração de televisão, seriado, desenho animado.  E era uma coisa rejeitada por uma intelectualidade porque eram enlatados, colonização americana, aquela chatice. Depois veio a Deborah Harry, do Blondie, que era outra coisa; o rock and roll. Ela era um ícone, uma beleza absurda. Quando aparecia eram toneladas de fotos e quilômetros de filmes, foi modelo para o Andy Wahrol. Ela me fascinou pelo elemento rock e pelo fenômeno midiático, super fotografada e divulgada.

Como vai o seu grupo de poesia?

O Trovadores do Miocárdio obviamente está parado. Existem lives de poesia mas concordo com o idealizador do grupo, o Eduardo Beu, de  que não é a mesma coisa. Nesse sentido somos radicais; tem de ser presencialmente, com o clima da Balsa, o restaurante onde a gente se apresenta em São Paulo, no vale do Anhangabaú. Live é uma  coisa complicada. Ano passado teve um monte de lives e a maioria é patética. Aquelas pessoas falando sem público, uma ou outra funcionou. No caso de literatura talvez até funcione melhor que a música, mas no caso dos Trovadores concordo que não dá. Fazemos apresentações desde 2012; começamos em uma boate, em São Paulo, depois demos uma circulada por cidades no interior do estado. Fizemos apresentações em Parati, na Flip, em 2016. Nos apresentamos em livrarias em São Paulo e aqui no Rio foram três vezes no Manouche,  um bar no Jóquei, no Jardim Botânico.

Com qual dos escritores que viraram estátuas em Copacabana se identifica mais?

Com certeza tem o Nelson Rodrigues, mas eu gosto muito da Clarice Lispector, prá caramba. E o Drummond também . Mas se tivesse de falar sobre ligação com  a minha vida é  o Nelson Rodrigues e a Clarice Lispector. Em termos de estátua, a localização da Clarice Lispector é maravilhosa, alí no Leme, você vê toda a Copacabana atrás. O Nelson Rodrigues está escondido, botaram ele na  Barata Ribeiro. Era outro que tinha de estar no Leme porque vivia lá direto. Tinha de estar  pelo menos em algum ponto do calçadão do lado dos prédios, ou no calçadão do meio. Mas a estátua mais legal é a do Drummond. Virou um símbolo de Copacabana, maravilhoso aquilo.

 

 

15/06/21