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Um livreiro renascentista


Em janeiro, Ivan Costa reabre a A Belle Epoque livraria no Méier destruída pelo fogo em julho e depois, pretende ressuscitar  O Livreiro Errante, atividade que exercia antes, e levar livros e arte à regiões da Zona Norte e interior  do estado carentes de livrarias.

Carioca do Méier, Ivan entrou  no mercado trabalhando na Leonardo da Vinci  e, depois, retornou à mesma galeria onde funciona a livraria  vendendo livros usados no Berinjela, para , a seguir, alçar voo solo começando por expor livros na calçada em frente à Estação Carioca do Metrô.

 

Para ele, que, a partir dos 14 anos trabalhou como aprendiz de pedreiro e serralheiro, vendedor de pastel na praia, vendedor de cachorro quente em barraquinha, técnico de notebook, auxiliar administrativo e funcionário da Telemar, ser livreiro não era um sonho.

Mas quando sua livraria ardeu em chamas na noite do dia 21 de julho  num vídeo gravado por ele mesmo no  exato momento da tragédia a frase que repetiu em prantos inúmeras vezes foi:” O sonho acabou”.

Em quatro anos de  vida, a pequena livraria de livros e discos usados estrategicamente localizada em frente ao Colégio Estadual Visconde de Cairu na pacata Rua Soares, no Méier, havia se tornado um polo de movimentação cultural  da região, inspirada no modelo da Da Vinci, Berinjela e Baratos da Ribeiro.

Com dois meses de inaugurada a Belle Epoque promoveu seu primeiro sarau literário, seguido por exibição de filmes, apresentações musicais e lançamentos que foram, de um livro escrito por um grupo de escritores da Maré, bancado por edital, a uma obra da escritora, professora, doutora em filosofia, Élika Takimoto.

Para as crianças a Belle Epoque distribuía livros sem custos e no acervo, além de literatura, há predominância de livros da área de humanas, que,  segundo Ivan, têm uma procura maior em função dos estudos acadêmicos.

O sucesso do livreiro e agitador cultural  gerou convite para se tornar sócio da Casa da Árvore, uma das mais novas livrarias do Rio, com uma unidade aberta na Pedra do Sal, no Centro, em 2020 e outra na Tijuca em 2021. Mas em seguida ele  opta por retomar a carreira solo na Belle Epoque.

Com a flexibilização pós-pandemia a livraria promove à partir de 2022, aos sábados, o evento A Belle e a Feira, na rua onde está localizada, com venda de livros, discos e também artesanato e produtos gastronômicos a cargo de moradores da região, mais atrações culturais.

A verba desse incremento permite  Ivan iniciar a reforma na loja que acabou por provocar o incêndio gerado, segundo a polícia civil, por um curto circuito, quando, a princípio, todos acreditavam, segundo Ivan, que a origem pudesse ser criminosa devido às marcantes posições de esquerda da livraria  na internet.

Ela chegou a ser atacada em campanhas de desqualificação nas notas que são dadas aos estabelecimentos  pela internet e dois empresários o procuraram para oferecer ajuda  na reconstrução  da livraria se o livreiro apagasse os posts políticos e parasse de se posicionar.

Mas, a campanha de reconstrução feita através de vaquinha pela internet foi suficiente para que a Belle Epoque seja reaberta inclusive com a anexação do bar ao lado onde além de café e outras bebidas Ivan poderá vender o seu “famoso” pão francês com lingüiça e molho à base de pimentões vermelhos e amarelos.

Experiente em vários ofícios  Ivan diz hoje não se  imaginar em outra função que não a de livreiro que vê, segundo ele  mesmo, com olhar romântico: “O que me encanta é achar um livro bacana e encontrar alguém que o faça render alguma coisa”.

Num mundo em que  vendedores competem com algorítimos o livreiro do Méier diz ter acabado de encomendar uma camisa onde, em contraponto à moda  do digital influencer, está escrito: “influenciador analógico”.

 

Como aconteceu a sua entrada no mercado pela Livraria Leonardo da Vinci?

Já tinha interesse em livros e havia vendido na rua antes. Gostava dos esótericos e, em determinado momento, tive tantos que, como fazia uns artesanatos relacionados ao tema, como incensários, velas perfumadas, resolvi vender essas coisas junto com alguns livros. Mas náo sonhava em ser livreiro. Entrei na Leonardo da Vinci em 2008 para fazer encomendas de livros da Europa e Estados Unidos e recebê-los. Substitui um livreiro que se aposentou e passou um mês me ensinando a função. Por causa da Amazon a Da Vinci para de importar livros, mas ainda tinha força nessa área. Havia semanas em que eu ficava maluco; chegavam 20, 30 caixas de livros e tinha que correr para descer com eles para a loja, encaminhar para os clientes. Muitos pedidos principalmente da galera universitária. Trabalhar lá foi um desafio: havia ido na Da Vinci antes com uma namorada e fiquei encantado com aquelas estantes até o teto. Ela estudava filosofia na UFF e foi pegar um livro que havia encomendado. Eu disse; “ Deve ser mágico trabalhar aqui”. Mas minha namorada cortou o barato na hora; “Você nunca vai trabalhar aqui”. Falou de requisitos que eu não tinha e, por ter dito isso, voltei lá e deixei meu currículo, mas principalmente por ter ficado encantado com a livraria. Três meses depois, quando já havia terminado o namoro, fui chamado para trabalhar. Anos mais tarde, eu e a ex ficamos amigos e quando nos encontramos falei; “ trabalhei na Da Vinci”. Ela ficou rindo.

Por que foi para o Berinjela, a seguir?

A Milena, da Da Vinci chamava o pessoal da biblioteconomia da UNIRIO para estagiar no escritório da livraria. Comecei a andar com eles que já me chamavam de calouro antes de eu passar para a faculdade. Quando entrei para o curso de biblioteconomia  o pessoal achava que eu já era veterano. Então, decidi dar um gás na faculdade e sair da Da Vinci. Mas não tinha grana e a coisa começou a apertar. Foi quando alguém me falou que havia vaga no  Berinjela. Comecei a trabalhar com o Daniel e lá foi a minha universidade livreira. Trabalhar com o livro usado dá muito conhecimento. Primeiro porque no sebo é quase um livro por título, você tem uma gama de títulos absurda.  Passei a lidar diretamente com os clientes que perguntavam sobre os títulos. Para saber onde estavam os livros tínhamos de arrumar as estantes toda semana. Com isso você vai sabendo onde eles estão. Também há o contato que você tem com livros esgotados que não há na livraria de novos. Por isso o slogan lá era “ Livraria Berinjela – outros livros”. Na hora do almoço a movimentação era absurda e você ficava todo o tempo em contato com autores e temas diferentes. Não é o mesmo que olhar no computador, que vai lhe dar a localização da estante. Separar os livros na hora em que chegavam dava um conhecimento também.

Quando surgiu o Livreiro Errante?

Antes de deixar o Berinjela comecei a vender na saída da estação do Metrô Carioca. Falei com o Daniel que sempre apoia quem quer trabalhar com isso. Quando se entra para o Berinjela ele diz: “Isso aqui é um lugar de passagem, você vai sair daqui para ser livreiro”. Os primeiros livros ele me deu e depois me vendia para que eu pudesse revender. Me deixava selecionar os títulos no estoque. Há outras pessoas com bancas de livros na saída da estação, mas eu chegava lá depois que essa galera estava indo embora. Saia do Berinjela às 7 e ficava alí até nove e pouco. Era pouco tempo mas pegava um pessoal passando e vendia. Foi quando comecei a ter  noção do que vende e do que não vende.  Alí, já me perguntavam; “ Você compra? Recebe doações?” . Comecei o ciclo de compra e venda de sebo alí no chão. Mas me questionei sobre o que fazer para não ficar com aquela bolsa prá lá e prá cá. Também não queria ter apenas uma barraca. Então evolui para um carrinho de aeroporto e depois para um triciclo onde a mercadoria  vai na frente. Na época tinha a moda do food truck e food bike e era comum dar o nome itinerante para qualquer produto: “cachorro quente itinerante”.  Aquilo me dava nos nervos e pensei; “ Cada dia estou em um lugar, então sou errante e não itinerante”. Daí surgiu O Livreiro Errante.  Quando a pessoa me pedia o telefone  eu fazia um desenho com um balão,  um símbolo de errância, algumas nuvens e o telefone embaixo. Depois, amigos de uma agência criaram uma marca baseada nesse desenho. Uma imagem bonita com um livreiro de época e um balão. Ela é um dos estímulos para quando voltar a trabalhar com bicicleta, ou uma kombi. Com o triciclo eu ficava aqui pelo Méier ou ia para algum evento especial pedalando. Para ir  ao Centro gastava em torno de  uma hora se o tempo estivesse fresco, em torno de uma hora e meia, se estivesse quente, num percurso de uns 15 quilômetros. Às vezes levava quase 200 quilos, porque livros e discos de vinil pesam bastante. Participei de feiras no Passeio Público, na Praça da República, vendi na praça Saens Pena e até na Barra, mas aí o triciclo ia numa kombi.

Quando surgiu a possibilidade de abrir a Belle Epoque?

Ela já estava na minha mente,  tanto que juntava tudo em casa. Um dia o Olivar, que vende livros na Estação Carioca, comprou o acervo da Livraria Marins, um sebo na Praça Tiradentes, e me ofereceu as estantes por 400 reais. Eram mais de vinte estantes antigas de ferro e, como ele tinha prometido deixar a loja vazia no dia seguinte, arrumei um caminhão gigante onde as estantes foram ainda  montadas. Levei para a vila onde morava e só depois desmontei . Isso em 2016 e a Belle só foi aberta em 2018. Algumas estantes deixei na área e minha casa se tornou quase um sebo. Eu já postava  livros na internet e algumas  poucas pessoas iam até lá para ver. Minha casa foi o embrião da Belle. Quando consegui o espaço em 2018 trouxe tudo e abri.

Porque  o nome Belle Epoque?

Uma professora de literatura passou um texto do Otto Lara Rezende, Vista Cansada,  que começa com uma citação do Hemingway. Fui procurar algo sobre ele e achei O sol também se levanta. Fiquei maluco pelo livro e comecei a procurar autores relacionados ao período em que ele viveu. Tenho muitos livros em casa que pegam esse período, ligados à França também.  Depois descobri que houve a Belle  Epoque carioca e comecei a ler o João do Rio, Lima Barreto. Isso quando estava no colégio, terceiro ano. Terminei tarde os estudos porque que parei uma época para cuidar da minha irmã que era pequena. Era eu, minha mãe e ela e onde nós morávamos não havia em quem confiar para ficar com ela. Minha mãe dizia que eu tinha de estudar, mas eu, de bom grado parei uns dois anos para tomar conta dela. Nessa época do texto do Hemingway eu estava terminando o colégio já com uns 21 anos

Quando surgiu A Belle e a Feira?

Nos primeiros meses da pandemia foi sufoco; o pessoal trancado e com medo, não sabia o que estava acontecendo. Mas  as pessoas não vivem sem cultura, a pandemia provou isso. Comecei a postar livros, vinil,  fiz um clube de leitura on-line onde me mandavam trechos de livros ou de poesias. E esses livros que postava eram pedidos. Houve dias em que pedalei 20 quilômetros, com máscara e óculos, na minha Monareta. Quando começou a flexibilizar voltei a promover eventos e a galera que vinha  ficava mais tempo. A pandemia criou algo, que ainda vejo, de manter o pessoal no próprio bairro. Não chamaria de bairrismo, mas acho que ela ajudou as pessoas a redescobrirem o seu bairro. Mesmo depois que flexibilizou, muita gente ao invés de ir para longe fica por aqui. Há tanta coisa acontecendo, em especial, no Méier. Na  pandemia muita gente criou páginas na internet para divulgar algo que  começou a fazer em casa; bolo de pote, roupa, incenso caseiro. Pensei então em promover uma feira que trouxesse esse pessoal para a rua e, cada pessoa divulgando seu trabalho iria trazer mais gente, junto com tudo que eu já fazia. Então pensei que nome botar, porque minhas coisas são sempre assim, o nome vem primeiro, e aí veio A Belle e a Feira. A primeira edição  foi em abril deste ano. Tivemos cinco, sempre aos sábados. No começo era de meio dia às oito e a última, que aconteceu depois do incêndio foi de 10h às 8h.  Minha ideia é manter neste horário  mas sempre com um autor convidado e um músico de peso para chamar a galera desde o começo. Na última veio o Luiz Antônio Simas, que chegou às dez e pouco e já havia uma galera à espera dele. Em geral o pessoal  tende a vir um pouco mais tarde, depois do almoço, por volta de três, quatro da tarde. Mas agora também tem vindo expositores com comida como a Latifa, que traz culinária nigeriana deliciosa. Nós também fizemos comida, que nesta última vez foi feijão tropeiro. Há expositores com salgadinhos. Eles vem de vários locais da Zona Norte, mas a maioria é do Grande Méier, que agrega o Engenho de Dentro, Engenho Novo, Todos os Santos, Cachambi e Maria da Graça.

Como aconteceu a sociedade na Livraria Casa da Árvore?

Recebi a proposta de levar a Belle para o Centro, para  a Casa Omolokum, onde foi inaugurada a primeira Casa da Árvore. Mas não havia espaço que nos coubesse e também não me interessava ir para lá porque é importante que ela fique no Méier, onde nasceu. Aqui não tem livrarias e é bom que se ocupe esses espaços. O Fábio, que na época era do Berinjela estava conversando com as editoras e insistiu que eu entrasse com ele. Acabou que eu ele e o Dudu resolvemos começar alguma coisa. Fizemos uma vaquinha pela internet e conseguimos 10 mil reais para montar a Casa da Árvore, na Casa Omolokum, na Pedra do Sal, durante a pandemia. Um ano depois, em maio de 2021, veio a loja da Tijuca. No começo as coisas foram bem, mesmo com a pandemia. Mas então, nosso querídíssimo presidente começou a fazer umas cagadas, começou a subir o preço de tudo,o movimento caiu e as contas passaram a não fechar.  Eu disse: “Galera, tem muita gente tirando dinheiro, vocês são dois, eu tenho a livraria do Méier, eu saio, vocês se revezam e será menos dinheiro saindo da livraria.” E eles têm conseguido porque também fazem muitos eventos e às vezes um lançamento segura o mês.  A Casa da Árvore é voltada para cultura afro e temas de esquerda e eles estão mostrando que funciona.

Como é a relação dos alunos da escola em frente com a livraria?

Há alunos que vêm falar comigo sobre temas que poderiam conversar com os professores,  como uma menina que me perguntou sobre ela usar DIU. Aqui falamos de tudo mas eu disse: “Quem pode lhe orientar é a professora  X”. Então a encaminhei. Coloco promoção com  vários gibis do lado de  fora para eles. A ideia é estreitar cada vez mais esses laços; estar na frente da escola  é justamente para isso. Seria fácil pegar os 40 mil da vaquinha, alugar outro local e já estarmos funcionando. Mas a coisa tem lugar certo para acontecer e é aqui. Muitos acham que é o colégio que mantêm a livraria, mas estudante não tem dinheiro, é o pessoal que vem de fora. O colégio tem importância por essa troca. No fundo da livraria havia uma bolsa com gibis e houve um aluno que levou tudo, a cada vez, em uma mochilinha. Um dia percebi e fiz uma gravação com ele.  Depois falei com um amigo do colégio; havia algo para entender nesse comportamento. A diretora o chamou, ele ficou assustado e se entregou. Começou a trazer os gibis de volta e, na segunda vez que trouxe, havia passado a vergonha do impacto e conversou comigo chorando. Disse que os pais estavam se separando, que a mãe estava muito abalada com aquela situação e os três filhos ficavam perdidos. Era um comportamento para, de alguma forma, chamar atenção  sobre o que estava acontecendo. Os gibis eram para ele, naquele momento,  um refúgio. A confirmação  chegou quando o pai veio conversar comigo.  Não me preocupo de não ter tantos alunos comprando, a livraria está desempenhando essa função social. Teve a Elisa, que em 2018 começou a comprar. Às vezes me pedia para guardar até o mês seguinte quando iria pedir dinheiro para a mãe, mas eu dizia para ela levar, que depois acertávamos.  Várias vezes dei o livro. Ela estava no terceiro ano e no final veio dizer que havia passado para a faculdade.  Na época eu estava naquela de fecho ou não a livraria, o movimento estava ruim, quando vi um texto da mãe dela no Facebook. Dizia que ela vinha repetindo ano, andando com amigos que não estavam nem aí e que quando conheceu a livraria e começou a pegar os livros teve uma outra ideia do que queria fazer. Começou a estudar para o vestibular e entrou para antropologia na UFF. No texto a mãe agradecia à  livraria. Isso é algo que levo como referência para continuar fazendo esse trabalho.  Se tiver que abrir uma filial da Belle, com certeza será no subúrbio perto de um outro colégio.

E você como adquiriu o gosto pela leitura?

Foi  quando morei na casa da minha avó em Conceição de Macabu, no interior do estado. Meus primos moravam longe e fiquei morando com dois idosos, meu avô e minha avó. É no pé da Serra, chovia bastante , quando não podia brincar no quintal. Na sala havia uma estante com muitos livros, a coleção Vagalume toda. Me lembro do primeiro livro interativo que li: Eu detetive , onde você escolhia um caminho para descobrir quem era o vilão da história. Lembro das  Aventuras de Xisto, da coleção Vagalume. Um que me marcou muito e nunca mais achei apesar de procurar muito foi um livro que, na minha memória se chamava Como se faz, ensinava artesanato, aviões de papel diferentes. Foi alí, no final da década de 80, com essas obras que tinham sido lidas pelos meus tios que comecei a ter contato com os livros. Depois, sempre morei no Méier e não tinha acesso à livrarias. Havia algumas pessoas que vendiam livros na rua, como ainda há. Na passarela da estação do trem tinha o Sebo do Seu Diniz, mais com livros didáticos, revistas caça-palavras. Não havia muita coisa que me interessasse. Comprei muitos livros em uma livraria que havia no Shopping Carioca, mas livraria de rua não havia.

Hoje você lê o que?

Sou meio estranho nessa área, porque comecei lendo aquela galera da Geração Beat, os beatniks. Mas o último que li, que nem é dessa  galera foi o Fup, do Jim Dodge, sobre um pato e um velho que cuida do neto. O tema é meio bobo mas o livro é muito bom, meio lado B também. Leio muito sobre a Belle Epoque carioca, João do Rio, Lima Barreto, uma galera de quem gosto bastante. Tudo relacionado com os beatniks e a Belle Epoque carioca me fascina. Também gosto de curiosidades como Antologia do jogo do bicho que traz não só as técnicas do jogo, como poesias relacionadas a ele, contos. Fantástico. Gosto muito dessas coisas inusitadas.

Você mantêm  o interesse pelo esoterismo?

Quando era mais novo tinha umas visões e comecei a ler para entender o que acontecia. Por conta disso, tive contato com várias faces do mundo esóterico. Os dois primeiros livros foram um do Della Monica, Diário de Magia, e o outro, não lembro o autor, era Ritual de Magia Branca. Depois veio  o do Vasariah, No mundo dos elementais. Cheguei a entrar em um grupo sobre esoterismo e continuo estudando. Me considero sensitivo, mas nunca fui focado em religião ou doutrina específica. Tento ver pelo prisma, por vários raios diferentes. Estudo tanto o lado do esoterismo quanto as religiões de matriz africana. Me dou a liberdade de surfar pelos livros de várias vertentes. Cheguei a me iniciar na Teosofia, mas não na Sociedade Teosófica. Havia um brasileiro no sul de Minas que pegou essa doutrina e criou uma corrente própria, a Sociedade Brasileira de Eubiose e dessa, um carioca, o Vanderlei Capistrano, criou a Confraria Mística Brasileira, ou seja, é uma vertente da vertente. Mas ando meio afastado, sou meio errante em tudo. Estou lendo sobre o Ifá cubano, que é muito interessante; veio da Nigéria e em Cuba criou uma linhagem própria. Não gosto de falar muito porque ainda estou estudando, mas funciona a partir de um oráculo que fala direto com Orumilá. Lembra o I Ching porque usa umas contas que parecem a casca do coco e, dependendo do lado que ficam dispostas,  dá- se o significado.

Esoterismo não vai de encontro ao materialismo da esquerda?

O ser humano é múltiplo. Acho importante um estudo sobre religiosidade porque muito do que estamos passando agora é justamente  sobre a esquerda se afastar de vários grupos religiosos que foram e estão sendo usados pela direita. Até o início dos anos 90 os grupos de esquerda estavam mais próximos das comunidades evangélicas, o que o pessoal chama de trabalho de base. Isso foi abandonado e faz sentido fazer essa reconexão, nem que seja apenas sob a forma de estudo para reaproximar de quem realmente interessa, não só da comunidade evangélica, mas do povo; o povo é religioso. Na Belle temos uma seção só de esótericos e um monte de gente de esquerda compra. Soube que na UERJ havia um grupo de estudos que relacionava fatos da história do Brasil com momentos da astrologia; “quando aconteceu o golpe de 64 havia essa conjunção que favoreceu”. Sou do signo de câncer e acho que tem algumas coisas na astrologia que batem, não essa coisa de previsão de jornal. O signo de câncer é muito ligado à família e a livraria passa essa coisa de acolhimento, de se sentir em casa. Por mais que esteja puto vou sempre receber bem, mas depois que a pessoa me conhece eu me solto; “Hoje não estou com saco não”. É uma característica do canceirano, ele é ranzinza. Não é aquela pessoa amorozinha.

Na área do vinil você tem alguma segmentação?

Trabalhar com o vinil te faz estudar muito a década de 70, a MPB daquela  época. Hoje mesmo eu compartilhei no Instagram da livraria o resultado do meu Spotify; o artista que eu mais escutei esse ano foi o Mílton Nascimento. Atualmente uma das minhas músicas preferidas é Tudo que você podia ser. Ela toca e eu fico viajando, me deixa em transe, magnífica. Inclusive temos três playlists da Belle no Spotfy: uma é o  Sarau dos Errantes, a maioria são músicas brasileiras dos anos 70, tanto MPB como a Música Preta Brasileira, Tony Tornado, Jair Rodrigues, Di Melo,  Simonal a galera que fazia música Black, Tony Bizarro, Orlandivo, Evinha. Um pessoal que nem é tão escutado hoje em dia mas que quando você ouve diz; “Caraca!”.

Qual foi a solidaridade dos colegas livreiros depois do incêndio na Belle Epoque?

O Daniel, do Berinjela, veio no mesmo dia. Eu postei o vídeo e 40 minutos depois ele chegou. Veio muita gente no dia; o pessoal da Casa Porto, na região portuária, o Rafael Vidal, o Ronaldo que abriu o Sebo Miudinho Me Bem, no Largo do São Francisco.  Os primeiros a chegar  no dia foram dois amigos que moram aqui perto,  a Paula e o Ronaldo. Viram a fumaça e depois o  vídeo com o incêndio. Cada um  trouxe um livro, ela com  A voz da esperança, do Castro Alves, e ele com Fahreheint 451, do Ray Bradbury. Peguei os livros, abracei os dois, comecei a chorar de novo. Também veio o Danilo, da Livraria São Francisco.  O incêndio foi por volta de 10 da noite e ficamos aqui até umas duas da manhã. Em certo momento falei: “Galera, preciso de uma cerveja”. Chamamos o Zé Delivery e ficamos conversando e vendo a movimentação nas redes sociais. Tem um rapaz com uma página na internet, o Méier Vip, que criou uma vaquinha, sem me falar. Depois me passou o dinheiro. A coisa começou a tomar uma proporção absurda. Depois fui para casa, não dormi e nove e pouco estava de volta. Quando vejo tinha umas trinta, quarenta cabeças aqui.  Veio o Faustini, da Secretaria de Cultura, o subprefeito da Zona Norte, Diego Vaz,  a Vera Saboya, também da Secretaria de Cultura, o pessoal da Columrb daqui de perto e simpatizantes que nunca haviam estado na livraria antes. Eles ajudaram a tirar tudo da livraria. Teve uma cadeira de madeira que não queimou, ficou intacta e nós a apelidamos de Exu Cadeira. Ela vai voltar para a livraria. Agora depois da reforma vamos ter um terraço em cima, num espaço que eu já havia alugado que será um café, um  quarto que será espaço multiuso com oficinas, aulas públicas para a comunidade; alguém que quiser dar uma oficina de macramê para ajudar a galera a arrumar um trampo; um amigo que queira dar uma oficina de fanzine, ou exibir um filme. O terraço será um espaço para o pessoal curtir uma vibe que já existia na Belle. Compravam livro, vinil e ficavam escutando as músicas que coloco, tomando uma cerveja, um café. Agora podem fazer isso embaixo e no terraço, que também será um espaço para música ao vivo. Será um lugar de incentivo, para aqueles da Zona Norte e do Méier que não conseguem tocar em outros locais. Vamos movimentar os subúrbios.  Meu sonho é arrumar um casarão onde as pessoas vão inclusive se hospedar como fazia a livraria Shakespeare and Company, em Paris.

Como vê o corporativismo dos livreiros e a importância das associações?

Me tornei livreiro em uma livraria onde estava, entre aspas, me tornando concorrente do dono, quando na verdade ele estava me ajudando.  Já vi muito livreiro acreditar que o colega é concorrente, mas não acredito nisso. Há o ponto em comum que é o livro, mas cada livraria tem uma pegada única. As pessoas vão nas livrarias e vão ter carinhos, identificação. Não sei  o que acontece lá fora porque desde que criei a Belle estou muito voltado para o Méier, para a Zona Norte. Dentro disso, vendo outros locais surgirem como a São Francisco, a Sebosa, que começou com a Tatiana em Nova Iguaçu e depois foi para Jacarepaguá, o RB Sebo, em Madureira, nunca tive a ideia de que fossem meus concorrentes e sim de que quanto mais livrarias houver melhor. A quantidade de gente que nunca leu, mas tem a curiosidade de ler é absurda. Quanto mais livrarias houver mais vai haver  pessoas que irão se tornar o ser leitor, ocasional ou regular. Desde que comecei a ter as viralizadas na internet  com as coisas que fazia,  passei a divulgar os colegas, a fazer uma união mesmo. Faço isso na minha página e várias pessoas maravilhosas vieram até mim por  essas divulgações: “Conheci fulano por causa de você e acho isso muito foda, por isso que venho na sua livraria”.  Quanto mais nos unirmos melhor. É preciso o fortalecimento das associações e os livreiros formarem um corpo atuante. Agora mesmo existe uma bancada do livro para entrar na política em defesa do livro e das livrarias. O Gledson, presidente do Planetário está envolvido, a Renata Costa; conversei com eles e falei que agora estaria mais atuante nessa pegada. É a união com a Associação e essas entradas no poder público. A prefeitura hoje está mais atuante nessa área com as diversas movimentações culturais de apoio. Precisamos fazer essas mudanças para fortalecimento das livrarias.

 

19/12/2022