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Sobre livros e  discos


Uma das poucas lojas de discos do Rio sobreviventes na era digital, a Arlequim se tornou também livraria com cara carioca onde literatura, artes e humanas convivem sob a regência do livreiro Marcio Pinheiro.

A Arlequim fica em um dos endereços mais tradicionais do Rio de Janeiro, o Paço Imperial, inaugurado em 1743 como residência dos governantes portugueses e depois da Família Real, que funciona hoje como centro cultural.

A entrada principal, na Praça XV, é voltada para a Baía de Guanabara e a Arlequim fica na parte posterior, que dá para a rua Primeiro de Março no local antes ocupado por duas outras livrarias: a Dazibao e a Imperial.

A loja da  Dazibao, do casal Chico e Graça Neiva,  foi inaugurada em 1993 no mesmo ano em que a Arlequim, então apenas como loja de discos, se instalou no edifício. Em 2001 a Dazibao foi vendida para Marcelo Latcher, da Imperial, e em 2008 a Arlequim o sucedeu no espaço como livraria.

Hoje, de um lado estão os livros , do outro a seção de CDs  e  entre elas o restaurante, também Arlequim, que  começou como cafeteria  há dez anos e agora é movimentado local de almoço e aos sábados sedia a programação musical da casa.

Márcio Pinheiro se uniu aos sócios, Ronald Skin, o fundador, e Fernando Guilhon, que chegou depois,  vindo da gravadora Rob Digital, especializada em choro e samba, onde  trabalhou na área comercial “num momento áureo do disco em que até supermercado comprava CD”.

Na Arlequim, começou trabalhando com os discos e chegou a organizar uma seção com 700  CDs de tango que diz ter sido um sucesso, mas as sucessivas crises no mercado com cortes no pessoal da casa fizeram com que tivesse de assumir a livraria há três anos.

Fã do samba e do choro ele diz já ter sido mais ligado à cultura tradicional e hoje  é crítico com relação a ela. Na literatura, gosta de George Orwell, “principalmente 1984”, e Marcel Camus, “amo de paixão”.

Faz uso das novas mídias, como o Spotify, para  pesquisas musicais, mas mantêm o hábito de sentar para ouvir CDs : ”É uma forma de enfrentar a crise do tato, do palpável; ter a obra presente”.  Por isso, com o livro é o mesmo;  não  é adepto da leitura digital.

Márcio acredita que as novas mídias não  seguem uma linha evolutiva e  irão conviver entre si: ‘Não conseguimos olhar com pessimismo o mercado do disco”. E com relação ao livro a permanência do tradicional lhe parece mais óbvia.

 

 

Qual o benefício da Arlequim estar em uma área nobre do Rio Antigo?

É um local importantíssimo na memória da cidade, temos frequência de turistas mas poderia ser melhor. Anos atrás o caderno de turismo do The New York Times fez uma matéria em que chamava essa região de O Lado Obscuro do Centro;  que precisa ser mais explorado pelo turismo. Isso foi antes da revitalização para a Copa e Olimpíadas. A região melhorou mas poderia ser mais aproveitada como local de passeio, inclusive nos finais de semana. O Centro deveria ser mais ocupado para o lazer, mas existe a competividade das praias, da zona sul. Por outro lado a derrubada da Perimetral e outras reformas deixaram a região mais deserta.  A Praça XV era um local de encontro, havia o Mergulhão, com várias linhas de ônibus conectando o Centro às Zonas Norte e Sul e às barcas para Niterói, que foram transferidas para outros locais.

A livraria interage com as atividades culturais do Paço Imperial?

O Paço é um centro cultural muito voltado à arte brasileira contemporânea. Quando as mostras não têm um catálogo próprio produzido pelo Paço nós vendemos os livros dos artistas que vão expor. Procuramos fazer uma ponte com as exposições. Por conta disso temos uma seção de arte brasileira contemporânea. A procura é grande sobretudo quando a exposição tem um impacto como a da Beatriz Milhazes. Também quando há alguma coisa relacionada à música; exposição  com obras em torno do trabalho de Maria Bethania, Gilberto Gil, Dorival Caymmi. Recentemente tivemos uma parceria direta com os curadores da mostra A União Soviética através da Câmera. Vendemos o catálogo, divulgamos as visitas com os curadores.

Ser vizinho da Assembleia Legislativa é prejudicial , às vezes?

Sempre há manifestações.  Nas de 2013 o Paço foi apedrejado; alí foi o ápice. A loja estava fechada mas o setor de CDs foi saqueado. Isso na noite da ocupação da Assembleia. Ninguém sabia o que se passava, não tínhamos conhecimento do que era o  movimento dos Black Blocs e ficamos muito preocupados. Mas retomamos normalmente no dia seguinte. Na época havia uma mostra com o acervo do Roberto Marinho no Paço; tinha um cartaz grande com o nome dele e isso despertou a ira dos manifestantes.  Mas independente de qualquer coisa estamos em um dos prédios mais importantes da história do Brasil; isso deveria ter sido considerado. Às vezes as manifestações  interferem  no movimento, outras não. Houve uma dos professores do estado onde eles acabaram descobrindo a livraria e houve uma integração. Entendemos que estamos diante da Assembléia um espaço de manifestações e protestos e vemos legitimidade em muitos. Nâo critico os Black Blocs nem a nada. Estamos vivendo em um contexto conturbado, mas lamentamos muito o que aconteceu com o prédio e conosco.

A Arlequim se posiciona  politicamente como algumas livrarias independentes?

Hoje as posições políticas estão muito confusas. Não me coloco nem à esquerda nem à direita, apesar de achar legítimas inúmeras manifestações de reivindicação. Mas desde que o PT assumiu se perdeu muito essa referência de esquerda ou direita por causa das alianças que fizeram. Não acho que tenha sido um governo muito à esquerda pelas alianças e pela política econômica que praticou. A livraria não se posiciona; nosso foco é música, arte, literatura. Temos uma grande seção de história e de ciências sociais onde não há um posicionamento único. Mas se o assunto da ordem do dia é o movimento feminista, recebemos os livros da Angela Davis, da Marcia Tiburi.

Há um relacionamento entre a Arlequim e as livrarias independentes vizinhas?

Deveria haver uma troca com a Leonardo da  Vinci, a Folha Seca e a Travessa que estão perto de nós. Primeiro porque são livrarias de grande importância para a cultura da  cidade. Admiro o trabalho do Rodrigo, da Folha Seca, pelos assuntos que coloca, pelos eventos que promove. Também o do Daniel Louzada; manter o nome da Da Vinci é preservar a história das livrarias do Rio, é manter um acervo muito forte voltado às ciências humanas. Acho que deveria haver uma troca maior entre a gente mas tem o problema da falta de tempo.

Como é a promoção dos eventos na livraria?

Corremos muito atrás dos lançamentos. Ano passado fizemos alguns importantes voltados para a música; um deles, em setembro, foi o songbook do Toninho Horta; um sábado musical, tarde histórica,  a casa lotada. Foi importante por que envolveu o livro e a música, marca da Arlequim. Outro importante foi a biografia do Francis Hime, Trocando em Miúdos. Por estarmos perto do Fórum, uma região repleta de escritórios de advocacia, temos feito muitos lançamentos na área jurídica. Há um público forte nessa área e por isso estamos ampliando novamente o acervo de direito. Mas queremos aumentar o leque de lançamentos. A dificuldade é fazer parceria com grandes editoras. Não sei se existe algum vínculo entre elas e as  redes de livrarias. Talvez haja o interesse do autor em fazer o lançamento em determinada livraria. Mas procuramos lançamentos nos valendo do nosso espaço, da importância do Paço. Recentemente lançamos O Crime do Cais do Valongo, da Luciana Alves Cruz, da Editora Mallet; é um romance histórico, se passa no século XIX  e tem a escravidão como pano de fundo e o  Paço é citado na história .

A Arlequim trabalha com as editoras independentes?

As editoras independentes ocupam um papel importante no mercado editorial, mas o espaço é um drama. Nos últimos anos surgiram muitas, apesar da crise econômica e da crise no nosso mercado. Editoras como a Carambaia, de São Paulo, que trabalha com autores importantes como Marcel Proust  mas procura lançar obras inéditas, traduções com análises críticas e tiragens pequenas, muito elaboradas. Tem a Ubu, também de São Paulo, que pegou alguns projetos da Cosac Naif e obras de filosofia, da antropologia.  A Malet, que tem a proposta de lançar autores cariocas contemporâneos com obras que trabalham com a temática afro-brasileiras, dão protagonismo aos negros. A saída para as editoras independentes é esse vínculo com as livrarias independentes.

Em que medida a saída da  Jorge Zahar do mercado de distribuição afetou vocês?

O fim dela como distribuidora veio como uma bomba para a gente. A Zahar foi uma distribuidora muito importante. Sempre operou com muita eficiência no atendimento aos pedidos. Além de ter um catálogo fabuloso ela fazia a distribuição da Companhia das Letras, o que representava uma boa fatia das nossas vendas. Só agora estamos conseguindo retomar o ritmo porque a Companhia das Letras fechou parceria com outro distribuidor. Mas foi lamentável o fim da Zahar como distribuidora, que está um pouco nesse contexto da crise por que estamos passando.

A crise da Saraiva e Cultura com as editoras repercute na Arlequim?

Tem repercutido, de certa forma. São os lançamentos que dão impulso às atividades das editoras e das livrarias. Na verdade é uma crise que já vem se arrastando há alguns anos.Por outro lado aqui nós vendemos sempre obras clássicas, do Hemingway, do Camus, não necessariamente novidades. Um lançamento da Sextante para nós não tem nenhum impacto porque não trabalhamos com ela. Essas publicações que dão um pique para o mercado a gente nunca teve. Somos uma livraria pequena e nossa proposta é diferente; são os clássicos, editoras independentes, lançamentos na área de história e filosofia. Por isso a redução dos lançamentos das editoras em função da crise dessas redes não nos afeta muito.

A proposta da Arlequim com os CDs  também é diferenciada?

Ela sempre teve como proposta oferecer música brasileira, o samba, o choro. Ficou marcada por trabalhar com gravadoras independentes na época áurea dos CDs. A loja surgiu no crescimento do mercado de CDs no começo dos anos 90. Também se propunha a trabalhar com discos importados de jazz e música clássica. Meu trabalho era voltado para a música latino-americana, ao choro. Não era só venda de disco; tinha pesquisa, a busca por gravadoras. Houve uma coisa inédita que foi fazer contatos com Argentina e Uruguai; trazer para cá o tango, a música do folclore da América do Sul. Projetos que resultaram em apresentações musicais também. Eu era muito envolvido com isso. Quando assumi a livraria tentei manter uma identidade com a própria história do CD; ter uma grande seção de música e uma grande seção de história, não só pelo fato de estarmos no Paço Imperial. Tentar oferecer algo que não é best-seller e tem uma importância.Temos uma seção de arquitetura e urbanismo e tivemos outra de patrimônio histórico que pretendemos retomar.

Que paralelo pode traçar entre o mercado do disco e do livro?

O mercado da música mudou radicalmente. Até os anos 90, se compararmos com o mercado de livros, o da música dominava. Havia muito mais lojas de CDs do que livrarias, pelo menos no Rio e em Niterói. Mas em função da tecnologia, dos streamers, das plataformas digitais esse mercado mudou radicalmente. Mas ainda temos um público grande para o produto que vendemos; obras clássicas do samba, CDs de música clássica. A mídia digital está muito ligada a quem procura a música do momento. Há mais de 15 anos ouvimos falar sobre o fim do CD, mas qualquer projeto importante que sai em CD vendemos muito bem. Um exemplo é o Caravanas, último do Chico Buarque; em dois meses vendemos mais de 300  CDs. As pessoas ainda querem consumir o CD. Também temos vinil; havia uma seção maior, mas hoje a importação está muito cara, com muitos tributos. O disco brasileiro também é caro por causa da tributação. O preço médio de um LP está em torno de 80 a 100 reais. Aqui no Rio temos uma fábrica, a Polysom, que foi reativada,  produzindo discos com obras clássicas do samba, do rock e da MPB e também obras inéditas. Existe uma demanda, mas para esse mercado crescer é preciso melhorar o preço do LP, muito mais caro  que o livro. O CD já tem preço mais compatível, o nacional está numa média de 30 reais. Hoje somos, junto com a Arquivo Musical, as únicas lojas de CDs do Centro. A Travessa, a Saraiva, a Cultura trabalham com alguma coisa mas não é o forte. Se entrar no site deles verá que a mídia CD não recebe tanta importância. Não conseguimos olhar com pessimismo para o mercado do disco, apesar de toda a crise econômica que enfrentamos. Quando a economia estava aquecida vendíamos muitos CDs e muitos livros.

E quanto ao preço do livro?

Hoje o público que quer comprar livros reclama muito do preço e realmente as editoras têm publicado com 10% de reajuste.  Para nosso mercado um livro de 60 reais é caro. Aí entra a questão importante que é o Preço Fixo. Como somos uma livraria independente trabalhamos com o preço de capa, não temos condições de fazer políticas de desconto como as grandes redes. Isso tem sido um problema. Adotamos um cartão de fidelidade com desconto de 6% para 15 ítens comprados. Se formos olhar pelo ponto de vista do consumidor ele quer comprar o que é mais barato. Não está errado, como consumidor ele tem de buscar o que é mais barato. Mas ele não sabe como isso funciona e afeta o mercado. Hoje temos poucas livrarias independentes na cidade. O público leitor precisa pensar no mercado como um todo. Aqui temos uma parte do público que vê  o livro pega o smartphone e faz a comparação de preços na hora e não compra. Não posso dizer que ele está errado. O problema é a concorrência extremamente desleal como a da Amazon que aqui dá descontos inaceitáveis em países como a França.

Concorda com a cobrança dos editores por mais  profissionalismo no mercado?

Acho que a profissionalização  do mercado editorial não  está restrita apenas ao livreiro, à livraria. Há um contexto. Se existe parceria entre uma editora e uma livraria a responsabilidade tem de ser de ambas. Houve casos de editores que consignaram livros conosco e sumiram. Não temos condições de correr atrás de editoras para acertar consignações feitas há três anos. Trabalhamos com mais de 30 editoras. No mercado do CD não existe a consignação como no do livro; há negociações de prazos.

Como está a Arlequim na internet?

Temos venda de CDs e livros pelo site, mas nossa principal forma de divulgação é uma mala direta com 8 mil  e-mails. Alí destacamos algumas obras literárias e CDs com resenhas feitas por nós, o que é um ponto importante; ter a nossa opinião sobre as obras. Sempre destacamos um livro e um CD, neste último  o livro foi a biografia do Leví- Strauss editado pela SESC e o CD foi o da Fernanda Takai cantando Tom Jobim, de uma gravadora do Rio chamada Deck, com produção de Marcos Valle e Roberto Menescal. Ele está tendo repercussão e para nós isso é importante. Através dessa mala direta conseguimos implementar as vendas pelo site. Mas sem dúvida a venda representativa é na loja física. Muitos clientes que recebem o informativo vêm à loja ao invés de comprarem pelo site. É claro que é o site de uma livraria independente e não dá para comparar com  os sites das grandes redes.

Quanto a sua relação com o livro se alterou ao assumir a livraria?

Estou totalmente voltado para o livro mas ainda muito envolvido com eventos musicais que realizamos aos sábados. Na verdade somos um híbrido e não dá para separar as coisas. Para nós, receber um romance do Nei Lopes ou um CD de choro do Deo Rian é a mesma coisa; são obras. Nós misturamos; eu e meus sócios somos empolgados com as duas coisas. Acaba que fico muito envolvido com as editoras, o trabalho burocrático. Mesmo quando não há movimento há um volume de trabalho absurdo. Já tinha um certo conhecimento; conhecia a seção de história, de filosofia, mas não do ponto de vista do livreiro. Comecei a entender o mercado e ainda está sendo um aprendizado, mas três anos nesse microcosmo da Arlequim já deu para aprender algo.  Como me dedicava a indicar discos e músicos, a livraria também se torna um ponto de discussão sobre obras, autores, editoras. Indicamos aquilo com que vamos trabalhando. Não dá para romantizar o papel do livreiro como o intelectual com tempo para ler; existe o trabalho burocrático. Mas na medida em que você cuida da livraria e tem interesse por determinados assuntos acaba tendo o que indicar.  É preciso montar o espaço com  obras do seu interesse e nem sempre com aquilo que o mercado determina. Visito algumas livrarias e as vitrines estão iguais. Nâo que a Revolução Russa não seja importante, mas o mercado lançou umas trinta obras sobre a Revolução Russa e todos fizeram uma vitrine igual. Não vai aí uma crítica mas uma visão do mercado. Houve os 130 anos da Abolição da Escravatura e fora o dicionário da Lilia Schwarcz pouca coisa foi  reeditada. Montamos uma seção grande sobre a Abolição, até porque a Lei Áurea foi assinada no Paço  Imperial. Estou em contato com a editora Escrituras para montar uma seção sobre cangaço; esse ano há a efeméride de nascimento e morte de Lampião. Vamos dar destaque às obras já lançadas, não são novas edições. Mas o cangaço é um tema importantíssimo na nossa história. Montamos a livraria pelo interesse e pela importância do assunto. Se me pautasse pelos números colocaria o Augusto Cury na frente, mas para nós é muito mais importante ter o dicionário da Lilia Schwarcz, a biografia que saiu do Rafael Rabelo. É um comércio de fato; nossa questão aqui é a venda, mas tem uma questão cultural; o papel cultural que as livrarias acabam desempenhando.

 

11/07/2018