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Versão brasileira

 

A tradução de livros, segmento importante do mercado editorial nacional, cresceu, se profissionalizou mas agora se vê assombrada pela chegada da inteligência artificial.


 

 

Em 1952, quando a Leonardo da Vinci, mais antiga livraria independente do Rio, foi inaugurada no Centro o acervo era de livros importados, principalmente da França.

Os anúncios da livraria na imprensa da época tinham listas com nomes de livros em francês num modelo de comércio que perdeu espaço para o aumento das traduções no mercado nacional.

Para Milena Duchiade, filha dos fundadores da Da Vinci, gerente da livraria até 2015, a expansão do ensino universitário no país nas últimas décadas do século XX foi determinante para a tradução de livros no Brasil.

“Até os anos 70  os livros de medicina eram em inglês ou espanhol, havia muito poucos em português.” Lembra ela, que largou a medicina para ajudar a mãe, Vanna Piraccini, então septuagenária, na gerência da livraria.

“O pessoal das ciências sociais na década de 70 lia clássicos como Durkheim em espanhol, não havia tradução.” Continua: “Mesmo hoje na graduação e pós-graduação se quiser aprofundar e não ler em línguas estrangeiras está perdido.”

Milena diz que apesar do crescimento, o mercado do livro traduzido no Brasil ainda é pequeno, voltado para o público jovem adulto e a autoajuda enquanto os livros técnicos sofrem muita pirataria.

“Lá fora se publica sobre todos assuntos, guerra na Ucrania, Oriente Médio. Aqui, não porque os editores  sejam desinformados; eles sabem que não terá mercado.”

Após a venda da Leonardo da Vinci em 2016,  Milena continuou no ramo editorial como tradutora de francês e desde então tem “uma listinha” de livros traduzidos.

Ela destaca Curar o ressentimento – o mal da amargura individual, coletiva e política , de Cynthia Fleury, Bazar do Tempo: “livro que tenho orgulho, me deu muito trabalho, por conta da pesquisa.”

Traduzido durante a pandemia ele vem com  citações de autores estrangeiros que, segundo ela, não podem ser traduzidas do francês,  “tradução de segunda mão”.

“Ao citar Freud e Nietzsche, por exemplo, há que dar referência às  obras em português traduzidas do idioma deles.” Numa época em que, por causa do Covid a Biblioteca Nacional esteve fechada: ” foi um trabalho enorme”.

Mas, para Milena, “o problema é o valor muito baixo que pagam pelas traduções.  É melhor não pensar no que vai ganhar ou nem vai traduzir.”

Como livreira, ela foi ativa na defesa dos interesses da classe, presidente da Associação Estadual de Livrarias RJ e pioneira na reivindicação da Lei do Preço Fixo para o livro, que, como Lei Cortez, tramita no Congresso.

Agora, a ex-livreira é filiada à Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes e ao Sindicato Nacional dos Tradutores, onde teve cargo na diretoria, mas se diz menos ativa por ser iniciante na profissão e desconhecida no mercado.

Ana Beatriz Braga de Nuci, uma das professoras de Milena na transição para a nova  atividade, está no terceiro mandato como presidente do Sindicato Nacional dos Tradutores, fundado há 35 anos.

Ela explica que a profissão é reconhecida mas não regulamentada: “ Um bom tradutor não tem de ter graduação universitária. Alguém formado em direito pode render melhor para editoras jurídicas”.

Mas a profissão exige conhecimentos específicos e quem não tem formação na área  deve fazer uma pós, diz ela. “Há um manual de ética no site, que inclui não fazer concorrência desleal, dar confidencialidade ao cliente e inclui questões de prazo.”

O sindicato não faz mediação entre contratante e contratado. Não existe piso salarial e um valor médio  por palavra traduzida está no site da entidade.

“A maioria dos tradutores prefere trabalhar como autônomos porque os ganhos são maiores.” diz Ana.” Não é algo que os incomode, lutamos por tarifas melhores, prazos maiores e mais visibilidade para eles.”

Ela cita o livro do autor norte-americano Lawrence Venuti,  A invisibilidade do tradutor- UNESP , e fala da lei que o sindicato reivindica com obrigação de citar o nome do tradutor na obra.

Diz que algumas editoras já  fazem isso na capa do livro: “Clássicos de Dostoiewski ou Tolstoi podem ser escolhidos a partir da tradução.”

O sindicato também pleiteia uma porcentagem da venda do livro para o tradutor, prática comum na França que, segundo Ana, já é adotada por uma ou outra editora brasileira.

A chegada da Inteligência artificial é para ela uma questão grave que pode baixar o valor pago aos tradutores. Ana não crê que afete a tradução literária, mas irá tomar espaço em traduções padronizadas como contratos, manuais e bulas de remédio.

Nas empresas, a tradução técnica deve continuar com humanos já que um erro da inteligência artificial pode causar acidentes graves, prevê.

“As entidades são super importantes porque são fórums de discussão entre tradutores.” diz Marcello Lino, que traduz do inglês e do italiano e foi graduado em tradução na Itália.

“Quando comecei os tradutores eram solitários e não havia troca de experiência”, lembra.“ O mercado se profissionalizou, há mais cursos, uma consciência das editoras sobre o trabalho de tradução.”

Ele começou com legendagem e tradução técnica e, convidado por uma editora entrou para o mercado editorial onde perdeu a conta dos livros que traduziu.

Se isenta de apontar um título entre os seus trabalhos: “A maioria gostei bastante de traduzir. Convivemos com a diversidade  e devemos aproveitar tudo que ela nos oferece.”

Mas cita Elena Ferrante,a autora best-seller italiana, de quem traduziu várias obras pela definição dada por ela ao ofício de tradutor:

“Quem traduz transporta nações para dentro de outras nações, são os primeiros a acertar as contas com modos de sentir distantes. A tradução é a nossa salvação, nos tira do poço dentro do qual fomos parar por puro acaso ao nascermos."

A expressão italiana traduttore traditore - tradutor traidor – é senso comum mas o conceito de tradução oscila, ao longo do tempo, entre a fidelidade ao texto e a interpretação do tradutor como mostra Lawrence Venuti em Escândalos da tradução – UNESP.

Guimarães Rosa  disse que “traduzir é conviver”. Conhecedor de cinco  outras línguas, o autor de Grande Sertão – Veredas, trocou correspondência com seus tradutores editada em 2 livros.

Em João Guimarães Rosa – correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason –  Nova Fronteira, escreveu que alguns trechos de sua obra ficaram melhor em alemão: “julgo esse idioma o mais apto a captar e a refletir todas as nuanças da língua e do pensamento em que tentei vazar os meus livros”.

Já  em João Guimarães Rosa – correspondência com seu tradutor italiano  Edoardo Bizarri – Nova Fronteira, escreveu:  “sou tradutor da realidade; quando me “re”-traduzem para outro idioma, nunca sei, em casos de divergência, se não foi o tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara.”

Traduções do português para outros idiomas  são em número bem menor que as vertidas para o nosso idioma e hoje em tiragem o destaque está com os títulos de Paulo Coelho.

Em 2008, a Câmara Brasileira criou o projeto Brazilian Publishers que promove livros nacionais no mercado  internacional com participação de 70 editoras, para aumentar a exportação.

Desde 2017, o Prêmio Jabuti, também iniciativa da CBL, escolhe, o melhor livro brasileiro, em qualquer gênero,  publicado no exterior,  e premia a editora responsável pela tradução.

Muitas das obras nacionais lançadas lá fora, no entanto, são mérito do agente literário, outra figura do mercado editorial com certa invisibilidade.

A agente literária Luciana Villas Boas, ex-editora da Record, sócia da  agência LVB & Co diz que a escassa presença de livros brasileiros no mercado global se deve em primeiro lugar à  dificuldade com o idioma.

“São pouquíssimos os editores que leem em português no mundo.” Explica: ”cabe ao autor contratar a tradução de parte da obra para o inglês para que o editor tenha ideia do que se trata”.

Outra dificuldade é que, sem contar Paulo Coelho, que, segundo ela, não tem uma narrativa com a marca brasileira, desde Jorge Amado um autor nosso não emplaca lá fora.

“Quando um livro se destaca, os editores ficam dispostos a publicar outras obras daquele idioma como acontece hoje com a literatura coreana, idioma em que ninguém lê no original”  diz ela.

O sucesso lá fora também depende da estratégia de marketing e neste sentido  a agente literária está otimista com A maldição das flores, de Angelica Lopes, Planeta, vendido  pela LVB & Co a vários países.

Em torno de mulheres rendeiras de Pernambuco no começo do século XX,  com história de mistério que chega ao Rio de hoje, o livro, segundo ela, terá grandes campanhas de marketing nos EUA e na França por parte das editoras.

Para Luciana, a tradução literária é uma criação original:” duas traduções de dois grandes tradutores fatalmente serão muito diferentes uma da outra. A boa tradução literária é necessariamente uma reescritura”.

Assim, ela não vê  esse ofício ameaçado pela inteligência artificial: “Mas a tradução da literatura mais baseada na trama dos acontecimentos do que na construção de uma linguagem própria poderá ser feita pela AI até porque os editores investem pouco na tradução do livro”.

A  notícia esta semana de que Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, é semifinalista do International Booker Prize, pode ser o prenúncio de um novo sucesso brasileiro no exterior.

O prêmio, dado anualmente à tradução para o inglês de livro lançado na Inglaterra ou Irlanda, divide entre autor e tradutor o valor de 50 mil libras e é um dos mais prestigiados do mercado literário.

Torto Arado, ficção mais vendida no Brasil em 2021 e quinto lugar no ano seguinte, foi lançado nos EUA e Reindo Unido pela tradicional Penguim Random House.

Editado pela Todavia, o livro, sobre  duas irmãs no sertão baiano,  está em 15º lugar entre os mais vendidos, na lista do PublishNews, e, se premiado, pode alçar Itamar Vieira como sucessor de seu conterrâneo Jorge Amado lá fora.

 

 

Kleber Oliveira

13/03/2024