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Cultura na livraria

 

Como o teatro e o cinema, a livraria  também vende cultura, mas ela dá acesso gratuito ao próprio produto à venda e a várias  outras atividades o que lhe abribui papel social incomparável.

 

Plateia em evento na Livraria da Travessa  em  Botafogo - foto Sofia Magalhães

 

Desde os tempos do Império, livrarias têm tradição além da venda de livros, como relata Ubiratan Machado  em História das Livrarias Cariocas sobre a  inaugurada no Centro em 1828 pelo escritor Evaristo da Veiga que levava o nome dele:

“A livraria em pouco tempo se tornou um dos centros irradiadores da oposição ao Primeiro Reinado, local de debates apaixonados, dirigidos e incentivados por Evaristo”.

A singularidade desse tipo de comércio é catalizar conexões sociais e  promover a civilidade, além de  disseminar conhecimento, preservar a cultura e promover o hábito de ler,  necessário na era das patologias digitais.

A mais badalada rede carioca com seis lojas na cidade,  a Livraria da Travessa, fez cerca de mil lançamentos de livros em 2023, segundo a coordenadora de eventos Ana Claudia Mello, além de contação de histórias, clubes do livro e debates.

“O fato de qualquer um poder frequentar a livraria, estar próximo a pensadores, influenciadores e filósofos tem tudo a ver com a democratização do acesso à cultura e aproximação do público com o livro”, diz Ana.

A Travessa de Botafogo, seguida pela do Leblon, é a que mais promove eventos, por sua centralidade na Zona Sul e estar rodeada por universidades.

“No meio acadêmico há uma programação muito rica, mas o público em geral não se sente confortável em estar nesse ambiente”, diz Ana. “ Na livraria a abordagem dos debates é diferente e os torna mais acessíveis a esse público”.

No lançamento este mês do livro de suspense Uma família feliz – Companhia das Letras, de Raphael Montes, na Travesssa de Botafogo a fila de jovens para ter a dedicatória do autor se estendia para fora da livraria.

No Centro, um dos pilares da Leonardo da Vinci é a realização  de eventos, desde que foi comprada em 2016 por Daniel Louzada, que também instalou um café na livraria.

“Antes da pandemia a média era de 150 eventos por ano”,  diz ele. “Na pós-pandemia está em torno de 100, a maioria relacionada com debates,  não necessariamente ligados à venda de um livro.”

Daniel relata que apesar de ter bom acervo de literatura, a livraria indepedente mais antiga do Brasil, fundada em 1952, sofre por uma conformação em que as editoras não fazem lançamentos literários no Centro.

Com isso, ela cria a própria agenda de debates com pensamento crítico voltado a problemas brasileiros como violência policial, privatizações, racismo, feminismo e direitos LGBT.

“Pautas democráticas e humanistas que no Brasil são identificadas com a esquerda”, diz ele. “Mas não diria que a Da Vinci é de esquerda, é alinhada com valores democráticos plurais, temos livros de todas as tendências políticas”.

Este mês  a livraria sediou debate sobre o livro Extinção da interet, do holandês Geert Lovink, teórico da mídia digital que questiona a internet dominada por grandes empresas longe do espaço democrático previsto nos anos 2000.

A mediação foi do jornalista Leonardo Folleto, que no prefácio ao livro escreveu: “é inevitável pensar que, de fato, a internet deu ruim — ou, pelo menos, não cumpriu nossas expectativas de melhora global e pode estar acelerando os problemas do planeta.”

A abordagem do tema em livro e com debate em uma livraria mostra a irônica permanência desses espaços para os quais  previsões apocalípticas anunciaram o fim com a chegada das novas tecnologias.

O e-book, lançado há cerca de 20 anos, iria substituir o livro, mas ocupa apenas 5% por cento do  nosso mercado segundo o presidente da Associação Nacional dos Editores de Livros, Dante Cid.

A Amazon, que a partir de 2016 abriu livrarias físicas para replicar a experiência de compra on-line, fechou as 24 lojas. Faltou o calor humano de uma independente: “Um picolé de chuchu”, definiu Rui Campos, da Travessa, ao visitar uma delas.

Novas livrarias, como a pequena Casa 11,  em Laranjeiras, inaugurada em julho de 2023, mostram que acolhimento é a diferença a partir do tapete na entrada em que se lê: “Mi casa, su casa.”

Há poucos dias, um cliente  pergunta à livreira Ana Mallet o preço de uma coleção usada de Cervantes. Ela consulta a Estante Virtual, dá um valor menor que o do site e ele oferece outro acima do pedido por ela.

Negócio fechado, o cliente se espanta ao ver David Kestenberg, livreiro, marido de Ana,  vestido com uma camisa  com uma estampa de  Dom Quixote o personagem mais famoso de Cervantes.

Impressionado com a sincronicidade  o cliente pede uma foto com o livreiro, cada um com alguns volumes da coleção,  e eterniza uma experiência que nunca haveria numa compra pela internet.

Ana e David, médicos,  estão, com mais 118 sócios, a maioria da área médica, à frente da Casa 11, inaugurada em  julho de 2023, com o mote: “Mais livros, menos farmácias”.

Já promoveram 40 eventos  e  mais oficinas de escrita, apresentações de teatro, música. A cada 15 dias, está havendo a discussão do livro A queda do céu, de David Kopenawa e Bruce Albert – “difícil”, diz Ana.

O próximo projeto é um cineclube na livraria que, segundo ela, já é um clube de pessoas que gostam de ler e estão juntas debatendo questões literárias  e temas como a bioética, assunto de  um encontro para breve.

Com livros usados na maior parte do acervo a Casa 11 recebe doações que têm lotes repassados à bibliotecas e vendedores de rua. Ela mesmo se faz de biblioteca uma vez por mês quando um acervo de 200 livros é exposto à frente da loja para empréstimo.

Em Araruama, no interior do estado, outro casal, Danielle Paul e Sergio  dos Santos Silva, está à frente da livraria Castro Alves, fundada em 2000, que em 2020 ganhou um irmão, o sebo Dante, localizado ao lado.

Danielle, com formação em psicologia, tem um trabalho de clínica com base na psicanálise e esquizoanálise em que usa a literatura junto aos pacientes: “Ajuda as pessoas a se repensarem.”

Ela pesquisa para sua tese de doutorado pela Fundação Getulio Vargas  sobre A função social da livraria, papel que constatou com a Castro Alves mas se tornou mais evidente com o Dante.

“No sebo há uma parte que é só para doação e outra de livros baratos, até 5 reais. Atendemos até morador de rua” , diz ela. “Não é algo comum porque a maior parte dessa população não vê a leitura como uma possibilidade de entretenimento, mas acontece.”

“Plantar o gosto pela leitura tem a ver com o modo como se recebe essas pessoas. Temos o hábito de todo bom livreiro de apresentar os livros por dentro, um tipo de ação que gera um interesse real pela leitura.”

Para Danielle, livrarias são muito mais espaços de sociabilidade do que eram: “Não são lugar só de compra. As pessoas frequentam para visitar livros, muitas por curiosidade, outras por passatempo à espera de outras pessoas, para verem novidades”.

O artista multimídia Fausto Fawcett falou em entrevista ao site da AEL sobre a importância delas na sua obra: “não queria comprar o  livro, ia umas três vezes na semana na livraria, decorava um capítulo, saia repetindo aquele negócio. Me ajudou muito.”

“Para mim,  as livrarias são meio que um templo onde você vai rezar; pega vários textos para dar uma rezada rápida. É uma coisa que sempre fiz” diz o escritor e músico autor do primeiro sucesso nacional do gênero rap: Katia Flavia, a Godiva de Irajá, de 1987.

Hoje, a novidade cultural em Irajá, bairro da Zona Norte  do Rio, sem cinema ou teatro é a Triuno Livraria.

Segundo Borgópio D’Oliveira, a inauguração da livraria em 2015 em região onde os bares são a tradição cultural causou espanto: “mas a aceitação foi excelente”.

“Ao passar em frente à livraria física muitos resgatam o hábito da leitura”, diz ele, que através da Triuno trabalha também “a questão do bairro”, com apoio a escritores locais, lançamentos, saraus de poesia e oficinas de fotografia.

Atual presidente da AEL, Bórgopio vê a isenção de IPTU para as livrarias  como reivindicação prioritária da entidade junto à Prefeitura do Rio, como  pleiteado pelas diretorias anteriores.

No Rio, cinemas e teatros são isentos do imposto. As editoras cariocas também não pagam IPTU e, sendo as livrarias as principais parceiras delas nos lançamentos de seus produtos, isentá-las do imposto é reivindicação mais que justa e reconhecimento do papel vital que têm no cenário cultural e literário da cidade.

 

Kleber Oliveira

30/04/2024