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A leitura da Geração Z

 

Eles são nativos digitais, nascidos entre 1995 e 2012, e surpreendem na adesão ao tradicional livro, o que tem causado  impacto positivo no mercado editorial do Brasil e do mundo.

 

A livreira Débora Vilhena e o psicólogo Bruno Souza: Geração Z no mercado


É assim que acaba, da norte americana Colleen Hoover, livro de ficção mais vendido no Brasil em 2023, de volta ao primeiro lugar esta semana na lista do gênero do PublishNews , é exemplo  da força dessa geração no mercado de livros.

Lançado em 2016, sem alvoroço, viralizou a partir de 2021 na plataforma de vídeos TikTok,  e foi primeiro lugar em vendas nos EUA, em 2022, o que trouxe outros títulos da autora para a lista dos best-sellers lá e aqui.

É assim que acaba foi lançado pela Editora Record, selo Galera, e, junto com outros títulos vindos depois, a autora tem cerca de 4 milhões de livros vendidos no país. Rafaella Machado, diretora executiva do selo diz que seu público é basicamente a geração Z.

O romance da norte-americana é fenômeno graças a  essa geração, que, segundo ela, tem facilidade de conexão com outras pessoas mas presencialmente é mais solitária, é a que menos bebe e a que demora mais a ter parceiros românticos e relações sexuais.

“Não terem experiências próprias, não significa que não queiram ler sobre isso”, diz Rafaella, “os dois gêneros principais da Geração Z são fantasia e romance. Isso explica como a romantasia, fantasia com foco no relacionamento dos protagonistas tem ganhado muito espaço”.

O gênero romance sempre foi forte no Brasil, mas segundo ela, agora há diversificação:” Sairam as capas meio eróticas com galãs sem camisa e entrou algo bonitinho, fofinho, com mais representatividade, casais negros, gays, lésbicos e outros tipos de corpos, meninas gordas, pessoas com deficiência.”

“Cada geração tem sua rede social” diz, “os millennials – ou geração Y, nascida entre 1980 e 95 - se identificaram com o Instagram pois ligam para estética, performática. A geração Z é mais despretensiosa e espontânea, quer vídeos curtos”.

O TikTok, lançado no Brasil em 2018, teve adesão de segmentos das outras gerações que influenciam a geração Z. A booktoker norte-americana Courtney Novak  que, já não tão jovem,  declarou o entusiasmo por Memórias Póstumas de Brás Cubas, impulsionou o clássico de Machado de Assis, de 1881, ao segundo lugar nas vendas de literatura latino-americana nos Estados Unidos.

A viralização foi tamanha que houve procura pela versão inglesa nas livrarias brasileiras como relata Maurício Dursk, livreiro da Travessa de Botafogo,  que tem grande afluência de jovens  devido aos cinemas, universidades e bares no entorno.

“Achei estranho aparecer tanta gente querendo ler esse livro em inglês. Já tivemos essa tradução mas acabou rápido e a importação demora mais para chegar”, diz ele, “é uma galera antenada com muita informação, mas informação rápida e procuram aprofundamento na livraria.”

Na Travessa de Botafogo o nicho voltado à Geração Z  tem quadrinhos,  fantasia, ficção científica, terror, dark side,  música e cinema. “Eles vêm em grupos grandes e ficam muito tempo na livraria” diz Maurício, “ gostam de comentar; um mostra o livro para o outro. Já sabem o que querem e não pedem orientação, mas aceitam indicação”. Segundo Maurício a nova tendência são autores coreanos.

Na loja estava  Bruno de Souza, psicólogo,  com uma lista de livros para comprar   que  teve o interesse despertado pela reedição da Amarcord de Um estranho no ninho, do norte-americano Ken Kesey, romance de 1962 ambientado em hospital psiquiátrico, que virou filme premiado, do checo Milos Forman, ainda não visto por ele.

Bruno  trabalha em uma escola mas não sente estabilidade: “Na minha idade, meus pais tinham a casa deles, o trabalho que queriam. Não sei se quero estar no mesmo trabalho em cinco anos, ou comprar um apartamento. As possibilidades são muitas e ao mesmo tempo pouco alcançáveis. É como aqui, vi vários livros interessantes mas com pouca possibilidade de aquisição.”

“Minha geração é ansiosa e talvez goste de ser ansiosa, tem um lugar confortável nessa ansiedade porque não tem para onde correr”,  diz o psicólogo,” o trabalho nos consome de uma forma muito maior. Meu telefone é um instrumento de trabalho, tenho de usá-lo muito e isso é ansiogênico.”

A literatura sobre a Geração Z confirma o diagnóstico nos títulos: Geração Ansiosa – um guia para se manter em atividade em um mundo instável – da norte-americana Lauren Cook , da  Rocco e A Geração ansiosa – como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais- do norte-americano  Jonathan Haidt da Companhia das Letras, foram lançados este ano.

A ansiedade do público contagia o mercado:” É tudo muito rápido, o livro estoura lá fora e eles querem ler aqui, é tudo para ontem” diz Rafaella da Galera, “Mudamos até a forma como publicamos, sendo mais ágeis na tradução e até na manutenção da capa para que a identidade do livro fique bem óbvia para quem viu no TikTok e identifique rapidamente a edição nacional.”

Leitor de literatura, biografia e psicologia a primeira coisa que Bruno fez ao morar sozinho foi comprar uma estante para os livros. Não se adaptou à leitura nos suportes digitais: “ Prefiro ler com o lápis passando.“. Acompanha dicas nas redes sociais mas não a lista dos mais vendidos. Diz nunca ter se adaptado à leitura de livros em PDF, o que é uma exceção:

Segundo André Nascimento e Silva da Livraria Machado & Cia a tecnologia do PDF desbancou a pirataria de livros em cópias xerox comum nas universidades nas gerações anteriores: “Procurei muito um livro, não achava e meu filho de 12 anos veio com a cópia dele em PDF.”

A  Machado & Cia fica na Faculdades de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão, Zona Norte, com grande percentual de alunos na Geração Z, mas alí o consumo na livraria é limitado por diferentes motivos além do PDF.

A cada semestre entram na faculdade cerca de mil  calouros onde, segundo André, a maior parte foi fazer letras por não conseguir pontuação para a primeira opção de curso. A evasão é grande e no final  ficam cerca de 200 que, estes sim, irão consumir na livraria ao partir para especializações, mestrado e doutorado e estarem trabalhando.

Alí a questão financeira de um público que em geral ainda não tem fonte de renda é o principal impecilho na compra. “Há casos de alunos que me pedem para reservar um livro de dez reais” diz André.

Na livraria que homenageia Machado de Assis no nome, a procura por Memórias Póstumas de Brás Cubas também foi grande  depois da viralização na internet  e repercutiu  na Feira do Lavradio, na Lapa, onde ela está presente aos sábados.

A norte americana Courtney Novak, que deflagrou a viralização é agora fâ de Clarice Lispector, depois de ler A hora da Estrela, indicado por seus seguidores:  “estou obscecada por essa mulher – como vocês levam sua vida depois de ler Clarice Lispector – ela inventou sua própria escrita.”

A autora brasileira já  é sucesso entre a juventude segundo Bruno Zolotar diretor comercial  da Rocco, outra editora de grande presença na nova geração, que lançou aqui, há 24 anos a série Harry Potter.

“A  obra de Clarice Lispector vive um momento sem igual em termos de popularidade, também adotada pela geração Z. Vimos isso na última Bienal do Rio com A Hora da Estrela sendo um dos 5 títulos mais vendidos, atingindo um público muito além da tradicional adoção escolar.” diz ele.

A preferência por  gêneros  como fantasia, young adult, new adult, foi herdada da Geração Y, pela Geração Z segundo  Bruno: ” mas  ela gosta  muito de conteúdo com alguma dose de erotismo, o chamado teor hot e não dá para dizer que é homogênea. Apesar da preferência pelo conteúdo estrangeiro, nota-se que há um interesse maior na literatura brasileira contemporânea .”

“Autoajuda não tem tanta aderência com a Geração Z” diz ele, “mas As 48 Leis do Poder, de Robert Greene, lançado em 1998, ganhou novo impulso em 2022 com uma indicação de uma jovem no TikToK,  com mais de um milhão de visualizações que  mudou a curva de vendas do livro. Ele teve duas novas edições e  não sai das listas dos mais vendidos no país.”

”Os influenciadores são players muito importantes no nosso ecossistema. Temos um núcleo no marketing que trabalha exclusivamente com eles” diz Rafaellla, da Record, “os que trabalham conosco são remunerados, os parceiros  ganham em livros.É uma via de mão dupla; ouvimos dicas de conteúdo, títulos,  capas, sugestões de brindes de pré-venda."

Na Rocco, Bruno tem mais de  cem parceiros literários, selecionados todo ano, que ajudam a divulgação nas redes e lembra  que essa parceria vem desde o Facebook e passou pelo Instagram: ”A diferença é que no TikTok mais gente produz mais vídeos. A plataforma permite  a produção de forma mais fácil e essa geração é muito dinâmica e criativa no uso das plataformas.”

A presença  da plataforma chinesa no mercado editorial brasileiro é tão marcante que ela já tem estande na Bienal do Livro, como aconteceu em 2023 no Rio e antes em São Paulo: ”Foi bem interessante” diz  Roberta Machado, diretora de comunicação do Sindicanto Nacional dos Editores de Livros,  entidade que organiza o evento:

“Não só a participação institucional, com  o estande, mas também a contratação dos principais booktokers para divulgarem promoções nos estandes das editoras. Ajudou a levar público para a Bienal. Acredito que essa participação vá  se repetir em 2025.”

“A Bienal foi totalmente adotada pelos jovens, vêem isso como um Rock in Rio dos livros”, diz Rafaella, “querem encontrar os autores, trocar brindes, criar conteúdo para as mídias. Para o público adulto há outras feiras como a a FLIP e a Feira do Livro de São Paulo”.

“A maioria dos lançamentos da Bienal é voltado para esse público, assim como o acervo exposto.” diz Bruno, da Rocco ,” o estande tem que ser lúdico, bonito, para que o público, além de comprar os livros com conforto, tenha um local para fazer fotos e vídeos compartilháveis. Temos sempre um espaço para os influenciadores dentro do estande.”

Em escala reduzida,  a geração Z produz seus próprios eventos, como os clubes do livro: “tem aparecido vários clubes pequenos, uma galera que faz picinics literários, em cada encontro as comidas têm a ver com aquele livro. As comunidades on-line, também têm favorecidos encontros presenciais”, diz Rafaella.

Na internet os clubes do livro arregimentam muitos participantes e no Brasil o recorde deverá ficar com Felipe Neto,  youtuber consagrado e escritor,  que teve seu novo livro Como enfrentar o  Ódio arrematado em disputado leilão pela Companhia das Letras em maio.

Nesta quinta feira, 25, foi lançado o Clube do Livro Felipe Neto, já com cerca de 4 mil participantes que terá versão gratuita nas redes sociais e paga no site do clube, com mensalidade de  R$ 62  com oferta de maior interatividade entre participantes e autores.

Farenheit 451, o livro  de estreia do Clube FB já começa a influenciar listas de mais vendidos. É uma ficção distópica do  norte-americano Ray Bradbury, de 1952, reeditada pela Biblioteca Azul e  levada ao cinema em 1966 pelo francês François Truffaut.

Crítica à censura, a obra fala de uma sociedade anestesiada por telas, onde o trabalho dos bombeiros é queimar livros. Eles são proibidos por forjarem o pensamento crítico que pode causar conflito. O título se refere ao grau de temperatura em que o papel entra em combustão.

“Na Geração Z, pais e professores contam menos na decisão do que ler, pois eles elegem seus próprios influenciadores” diz  Roberta do SNEL, “outro ponto importante é que é uma geração muito mais inclusiva e que se incomoda bem mais com textos que não retratem diversidade em suas histórias.”

“Ela é criteriosa para fazer compras, precisa se conectar com o propósito da empresa onde quer consumir. A compra é um ato político” diz Rafaella, da Record, “há um certo imediatismo, querem mudanças rápidas, cresceram com a noção do aquecimento global.”

Além de consumir e divulgar, a  Geração Z ocupa outras posições no mercado editorial como Débora Vilhena, há dois anos na  Livraria Leonardo da Vinci, Centro, depois de trabalhar  na Academia do Saber, também no Centro, onde restaurou livros usados, após curso sobre o ofício feito em função do seu “amor a eles”.

“Tenho outros amigos da mesma faixa etária que já trabalharam aqui, em outras livrarias ou em editoras, tenho uma amiga na  Livraria Janela”. Diz ela, que está terminando o curso de filosofia na  Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Débora não lê Colleen Hoover: “Gosto de uma literatura mais madura, com questões complexas. Relacionamentos amorosos não são minha busca.” Mas, em função do trabalho na livraria acompanha o movimento nas mídias sociais principalmente no Instagram, X e Discord.

Feminista, de esquerda, se define como bissexual, embora  veja o rótulo questionado porque sua atração não é binária e pode incluir pessoas trans o que a qualificaria como pansexual.

Débora não lê a autora que as mulheres de sua faixa etária colocaram no topo da lista de mais vendidos e nem está ligada ao TikTok, plataforma que serviu de trampolim para esse sucesso. Mas assume a característica que permeia sua geração: é ansiosa.

 

 

Kleber Oliveira

29/7/2024