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O cordel no mercado editorial

 

A literatura que surgiu no sertão  virou disciplina obrigatória nas escolas da rede municipal carioca, adaptou-se ao formato livro e aos meios digitais, enquanto Rio e São Paulo rivalizam como capitais mais importantes para o gênero no Sudeste.

 

 

Xilogravura, técnica característica do cordel, pela artista baiana Lucélia Borges

 

Em dezembro de 2024, a Prefeitura do Rio sancionou a lei 8.714/2024, proposta pelo vereador Celso Costa, do MDB, que estabelece a inclusão dessa literatura no currículo escolar. No mesmo ano, o Espaço do Cordel e do Repente ficou em segundo lugar entre os estandes mais lembrados pelo público na Bienal do Livro de São Paulo.

Declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN em 2018, o cordel influenciou clássicos da literatura como Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, do cinema como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e  adaptou best-sellers para sua linguagem poética  como O Pequeno Príncipe em Cordel.

Os  tradicionais folhetos com xilogravuras na capa, típicos dessa literatura e produzidos desde 1893,  são cada vez mais raros em cidades como o Rio. No Centro, a Livraria Academia do Saber, na Saara,  região de comércio popular, é a única que mantém um pequeno acervo.

“Antes, todas as livrarias dessa região tinham”, diz o livreiro Renato Pereira, da Academia: “Hoje, a procura é maior por estudantes para trabalhos escolares”. Folhetos semelhantes são vendidos em algumas bancas de jornais e em duas barracas na Feira de São Cristovão, Zona Norte, tradicional ponto da cultura nordestina no Rio.

Na maioria das livrarias o cordel está presente no formato livro. Em novembro o historiador e compositor Luis Antonio Simas lançou 7 Cordeis Brasileiros onde celebra as culturas nordestina e carioca com a métrica da poesia sertaneja e ilustrações do pernambucano Jô Oliveira que reproduzem a estética das xilogravuras.

Autores contemporâneos se voltam para o gênero com destaque para  Marco Haurélio que escreveu poesia no livro Meus Romances de Cordel, e  fez pesquisa em Breve História da Literatura de Cordel. Ele é um dos curadores da mostra Vidas em Cordel, em cartaz no saguão da  Estação da Luz, em São Paulo, até 16 de fevereiro, numa iniciativa do Museu da Pessoa junto com o Museu da Língua Portuguesa.

“Quando o Museu da Pessoa/junta numa exposição/ a força viva do agora/aos laços da tradição/ surge o Vidas em Cordel/um projeto que é fiel/ ao Brasil em construção.” escreveu Marco no poema que abre a mostra com 18 paíneis  em homenagem a personalidades que vão do escritor e acadêmico Ailton Krenak ao professor Geraldo Prado – o homem livro:

“Foi à terra onde nasceu/levou os livros para lá/ Pro interior da Bahia/ São José do Paiaiá/Se o livro muda a pessoa/A cidade mudará.” Diz a legenda sobre Geraldo criador da maior biblioteca rural do mundo com 110 mil livros.

Para Marco Haurélio, é difícil mensurar a importância de São Paulo ou Rio na cultura do cordel; “No Rio a tradição da literatura de cordel está muito vinculada à Feira de São Cristovão, ao mesmo tempo um movimento de afirmação de uma identidade cultural e de resistência, tendo a sobrevivência por meio da arte como grande baliza.”

Antes da Feira, criada em 1945, os nordestinos se reuniam no Campo de São Cristovão com apresentações de repentistas, emboladores e cordelistas, mas eram reprimidos pela Prefeitura com prisões e apreensão de violas e folhetos.

Em 1934, o jornalista Barbosa Lima Sobrinho publicou artigo no Jornal do Brasil que ligava o cordel à criminalidade:“O assunto de que mais se alimenta é a narrativa de crimes, desde Antônio Silvino a Lampião, de Meneghetti a Febrônio. A massa dos tarados, dos predispostos, dos pervertidos não dispensa o veneno dessas leituras”.

A inauguração da Feira de São Cristovão, por cordelistas como Raimundo de Santa Helena, deu legitimidade ao espaço como polo da cultura nordestina que alí teve seu auge na década de 80.  Para Marco Haurélio a diferença entre Rio e São Paulo é  que o mercado editorial paulista está mais aberto ao cordel que o carioca: “Mas isso pode ser apenas uma situação de momento.”

A tradição editorial do cordel em São Paulo começou na década de 20 com a Tipografia Souza. Em 1952 ela virou Editora Prelúdio e mudou as formas de produzir e distribuir essa literatura com um produto mais atraente, impressão offset, capas em papel couchê com imagens coloridas em estilo cinematográfico.

Em 1973  a Prelúdio adquiriu o acervo da Editora Luzeiro do Norte, em Recife, muda o nome para Luzeiro e se tornou ao final daquela década e início dos anos 80 o maior polo produtor de literatura de cordel do país.

Apesar das raízes europeias trazidas pelos portugueses, a literatura de cordel é uma tradição do Brasil e no Rio de Janeiro a Fundação Casa de Rui Barbosa tem um acervo, que dada a abrangência histórica, é tido como um dos mais importantes no mundo.

No Rio também está a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, fundada em 1988, e que teve entre os  motivos para sua criação a recusa da Academia Brasileira de Letras em aceitar o cordelista Raimundo Santa Helena derrotado nas duas vezes que pleiteou uma vaga na década de 80.

Localizada em Santa Teresa, centro da cidade, ela tem 40 acadêmicos, como a ABL,  entre poetas, xilógrafos e pesquisadores escolhidos pela diretoria mediante avaliação da obra. Cordelistas, xilógrafos ou teóricos falecidos foram homenageados como patronos de cada cadeira entre eles:

Leandro Gomes de Barros, precursor do cordel no ínício do século XX; Catulo da Paixão Cearense, poeta, compositor do clássico Luar do Sertão; Patativa do Assaré, músico e poeta e Capistrano de Abreu, historiador e etnólogo.

A ABLC foi fundada pelo cearense Gonçalo Ferreira da Silva que teve uma banca de literatura de cordel na Feira de São Cristovão. Formado em Letras, escreveu dezenas de livros desde a teoria, como Vertentes e Evolução da Literatura de Cordel, à série educativa Ciência em Versos de Cordel, com volumes com temas da matemática à microbiologia.

Gonçalo, falecido em 2022,  presidiu a entidade por 33 anos. O cargo está com o recifense Almir Gusmão que teve contato com o cordel ao ajudar na organização da biblioteca de Sebastião Nunes Batista, autor de A Antologia da Literatura de Cordel, e filho do paraibano Francisco das Chagas Batista, um dos precursores do gênero falecido em 1930, autor de Cantadores e Poetas Populares, obra imprescindível para pesquisadores.

Através  do Sebastião, comecei a escrever cordel e fiz o primeiro folheto em 1980”, diz Almir, que é formado em Letras. “Minha produção é muito diversificada porque trabalho com fatos circunstanciais, gosto de escrever sobre o que está acontecendo no país, sobre história."

Em 2019 A briga de Lampião com Bolsonaro, cordel escrito por ele foi notícia na coluna do jornalista Ancelmo Goes, no jornal O Globo, como sucesso de vendas na Feira de São Cristovão. Para Almir a maioria dos cordelistas tem um pensamento de esquerda:

“Quando o cordel  começou no Brasil havia vários temas: religião, seca, cangaço e menos sobre política”, diz ele.”Mas Getulio Vargas se tornou uma unanimidade que não pode ser ignorada. Havia a imagem de Getulio pai dos pobres.” Vida e Tragédia do Presidente Getúlio Vargas, do cordelista baiano Antonio Teodoro,  foi, na época da morte do presidente em 1954, um dos maiores sucessos do gênero.

Outro clássico é A chegada de Lampião ao inferno, de José Pacheco da Rocha. Segundo Almir,  alguns autores descreveram o cangaceiro como herói porque ele tinha um contrato de não invadir a cidade onde Padre Cícero morava. “Também  carregava  muitas moedas que distribuía para que o vissem como um santo que ele não era” diz Almir, “ andavam muito a pé e as moedas eram um peso do qual se livravam.’

Para o músico e cordelista potiguar Marcus Lucenna há muito conservadorismo no cordel por causa da religiosidade dos autores. Cita a  campanha sobre a AIDS, na década de 80,  junto ao grande contingente de nordestinos trabalhadores da construção civil no Rio, que teve o cordel como veículo.

“Houve uma licitação e fui o único não conservador.”, diz Marcus. “Tinha cordel que falava: a Aids chegou matando bicha de tudo quanto é qualidade. Coisa do demônio, Deus não quer.” Ele venceu o concurso com texto que, segundo o grupo Atobá, de defesa dos direitos homossexuais, era o único que não feria a importância de ninguém.

Marcus diz ter feito um poema técnico que num trecho diz; “o chamego por detrás é mais perigoso amigo/, não porque seja pecado ou porque seja castigo/, mas por ser mais apertado/ facilmente machucado/ e aí que mora o perigo.” O cordel foi declamado em audiovisual pelo ator Lima Duarte, divulgado no México  e foi matéria no jornal norte-americano The New York Times.

Durante 10 anos Marcus foi diretor cultural da ABLC e por quatro diretor da Feira de São Cristovão. “Precisamos colocar um cordelista para concorrer e ganhar uma vaga na Academia Brasileira de Letras, para que o cordel possa ser entendido como uma literatura tão importante como as outras”, diz ele.

“Antes havia essa dissociação do que é literatura oficial e o que é literatura popular que nos tempos modernos tende a acabar.” Ele lembra, no entanto que o cordel tem as regras fixas de métrica, rima e oração, que é a sequência narrativa com início meio e fim.

“Temos de ensinar as novas gerações a fazer bem feito. Se não, o cordel vira rap , que é feio, não tem a mesma beleza do ponto de vista estrutural”, diz ele, “o cordel trabalha com síntese, gosto de citar o poeta Gerônimo Guimarães: Até nas flores se vê a diferença da sorte/ Umas enfeitam a vida/ já outras enfeitam a morte.”

Autor de vários livros entre eles Na Corte do Rei Luiz, sobre sua convivência com o músico Luiz Gonzaga, Marcus Luccena acredita no caráter revolucionário do cordel:

“O jovem com celular na mão não quer ler mais literatura, nunca vai ler Dom Quixote, com 600 páginas. Em oito páginas eu boto essa história todinha na cabeça dele”.

Levar o cordel para as novas gerações como propõe a lei sancionada no Rio, com similares em Sergipe, de 2019, e no Rio Grande Norte, em 2021 é o trabalho desenvolvido, desde 2007, por Lucinda Azevedo, da Editora IMEPH, do Ceará, com o projeto Ondas da Leitura.

Dos 800 livros da editora, metade, segundo ela, é de literatura de cordel que leva às escolas de vários estados, através de editais, junto com cantadores; ”podemos publicar alguma coisa em folheto. Mas procuramos dar mais beleza às edições. A escrita do cordel é muito bela mas era considerada como uma literatura menor.”

A Editora IMEPH é a que leva declamadores, cantadores e palestrantes à Bienal do Livro de São Paulo, no Espaço do Cordel e do Repente, segundo estande mais lembrado pelos visitantes, atrás do estande do SESC.

“O espaço deu mais visibilidade ao cordel em São Paulo, agrega muitas pessoas que não teriam oportunidade de participar da Bienal, como o Coletivo Teodoras do Cordel com 19 mulheres de várias localidades do Brasil que vivem na cidade.”

Embora o folheto com xilogravura na capa já não seja mais o principal meio de divulgação da poesia de cordel, na Casa 11, em Laranjeiras, zona sul do Rio, o primeiro aniversário da livraria é comemorado com um gesto de valorização da tradição: o leitor recebe de brinde um folheto tradicional, no qual o cordelista Edmilson Martins narra a história da Casa.

Com o advento do rádio, da televisão e da internet, o cordel chegou a ser considerado 'um cabra marcado para morrer', mas, fiel a sua essência, se adaptou aos novos meios de comunicação e mantém sintonia com a famosa frase de Euclides da Cunha, que abre o site da ABLC: 'O sertanejo é, antes de tudo, um forte'.

 

 

por Kleber Oliveira

Para a Associação Estadual de Livrarias RJ

15/01/2025