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Mercado insano


A Convenção Nacional de Livrarias propôs práticas éticas  para  antecipar as premissas da Lei Cortez, em tramitação no Congresso Nacional, numa autorregulagem do mercado, diagnosticado como "doente"  pelos participantes do evento.


O presidente da ANL, Alexandre Martins Fontes, na abertura da 33ª Convenção Nacional

 

Realizada na véspera da Bienal do Livro, a 33ª Convenção Nacional foi promovida pela Associação Nacional de Livrarias no dia 12, Dia dos Namorados, que serviu de metáfora para o relacionamento disfuncional entre livreiros e editoras, deteriorado pela Amazon, ‘amante inescrupulosa destruidora de lares’  —  leia-se: livrarias.

Na abertura do evento, o presidente da ANL, Alexandre Martins Fontes disse: ”Nesse Dia dos Namorados, vida longa a homens e mulheres que têm o privilégio e a sorte de conviver diariamente com o  livro, esse produto mágico e transformador.” Mas devido aos percalços que o livro sofre no mercado brasileiro ponderou:

“Há mais de uma década lutamos pela aprovação da Lei Cortez. Por que esperar para implementar ações que fortaleçam o mercado livreiro? O que livreiros, editores e distribuidores podem fazer para inibir comportamentos que lentamente tem destruído nosso ecossistema? “

O nome  da 33ª Convenção foi O Ecossistema do Livro e para caracterizá-lo  os adjetivos foram de “doente” a “desastroso”. Questionada por Alexandre sobre a possível discordância acerca desse diagnóstico, a plateia — em torno de 200 profissionais do mercado editorial — permaneceu em silêncio.

“A sociedade precisa entender o livro, não como uma mercadoria descartável, mas como instrumento de educação e cultura tratado com o valor imensurável que tem,” disse a senadora Tereza Leitão, responsável pelo desarquivamento da Lei Cortez, em participação gravada em vídeo.

A lei está para ser votada no plenário e, nesse momento, segundo ela ,“vai  exigir forte articulação dos que  defendem a sua aprovação. Uma das principais tarefas é fazer com que a sociedade se sensibilize por algo que pode ser muito óbvio para esta plateia.”

Mobilizar outros setores da cultura, na campanha pela lei, foi a sugestão de Nicolas Roche, presidente do France Livre — antigo Bureau Internacional de l’Edition Française, que participou da convenção com relato sobre os antecedentes e benefícios da Lei Lang, similar à Lei Cortez, que completou 45 anos.

Segundo ele, na França, artistas renomados de fora do mercado livreiro como o cineasta François Truffaut fizeram intensa campanha pela aprovação da lei. Ele citou nomes como o de Chico Buarque para o mesmo papel de conscientizar a população.

A luta pela regulação do mercado francês surgiu antes da internet quando, na década de 70, a rede varejista FNAC instalou uma loja no centro de Paris, com 20% de desconto na venda de livros. Com a concorrência predatória, depois de seis meses, 11 livrarias da região fecharam, segundo Nicolas.

Hoje, graças à Lei Lang,  a França tem a rede de livrarias mais densa do mundo, relata: “Em Paris há 400 livrarias, enquanto  em Nova York, apenas 100.” Pela lei francesa, durante dois anos, os lançamentos só podem ter 5% de desconto, enquanto a Lei Cortez propõe prazo de um ano para descontos de 10%.

Em países onde não há uma lei  para regular o mercado  como nos Estados Unidos e Inglaterra o preço do livro sobe mais do que naqueles em que ela existe. Neles, nos últimos 10 anos, o aumento de preço foi de 30% a 60% enquanto na França, de apenas  0,4 %. “Uma diferença brutal,”  diz Nicolas.

“Se os lançamentos ganham descontos, livros técnicos e os de venda mais demorada têm aumento nos preços para balancear os custos. A segurança da Lei Laing, permite que a França publique 30%  a mais de novidades  por ano que o Brasil.”

Segundo ele, a regulação do preço  favorece a bibliodiversidade, as editoras ousam mais e assumem riscos, ao publicar novos autores e ideias. Em mercados instáveis, como o Brasil, o foco das novas edições  é em best-sellers e sucessos estabelecidos.

Numa referência ao  primeiro número  da revista do PublishNews distribuída aos participantes da convenção que traz   na capa a  pergunta “Como transformar o Brasil  em uma nação de Leitores?”, Nicolas  respondeu “aprovem essa lei e desenvolvam a rede de acesso ao livro”.

A disputa em torno do preço  faz com  que o livro perca as outras dimensões que tem como objeto cultural, disse Jeferson  Assumção, Diretor de Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca do Ministério da Cultura: “Quando o ecossistema não está equilibrado, tudo vira economia.”

A cultura, segundo ele,  além de economia, é cidadania e tem valor simbólico: ”a França compreende a  ideia de  exceção cultural do livro, seu valor está além da economia. Sua dimensão simbólica, que é estética e criativa, permite enxergar com mais qualidade e diversidade.”

Ele lembrou as diferenças com relação ao pais europeu; o Brasil  com os 300 anos de proibição de produzir livros e os  quase 400 de escravidão: “Somos um país de megadiversidade cultural e de megadesigualdade social. A livraria é um ponto de promoção da diversidade e de atenuar a desigualdade.”

Para Rui Campos,  da Livraria da Travessa, a lei pleiteada terá no mercado o efeito análogo ao da acupuntura no corpo humano. “A pressão em um ponto altera todo o sistema, como mostrou o caso francês”.

Rui lamentou que no salão contiguo ao da convenção, no Hotel Lagune Barra,   houvesse um evento simultâneo do  Sindicato Nacional dos Editores de Livros. “Eles tinham de estar aqui. É fundamental que o mercado tenha essa visão de ecossistema. Lamento que exista essa parede separando livreiros de editores.”

Para Alexandre  Martins Fontes, a Amazon  é a maior responsável pela destruição  desse ecossistema. Na Alemanha,  onde há  lei regulatória, a Amazon detém 18% do mercado, e 82%  da população compra nas livrarias. Nos EUA, onde não existe a lei a Amazon tem 60% do mercado. “No Brasil está chegando perto disso,” alertou ele.

“É um desastre!  Mas não é só a Amazon. Quando a editora estabelece um preço de capa e vende direto ao leitor por um preço abaixo do estabelecido, acabou o ecossistema do livro”, disse ele, “o leitor fica com a informação que os livreiros são um bando de ladrões.”

Para Vitor Tavares, das Livraria Loyola e Drummond, outro grande predador do sistema ecológico do livro são as feiras universitárias com descontos de até 50%. Segundo ele, a Drummond, sua mais nova livraria inaugurada em São Paulo é viável e dá descontos de no máximo 3%.

“Mas quando chegam as feiras de livros da USP e da UNESP sentimos os efeitos um mês antes. Vemos os grandes compradores pesquisarem na nossa livraria o que irão comprar nas feiras. O faturamento despenca.”

Alexandre Martins Fontes  esteve, em abril, no Festival do Livro de Paris: “uma festa linda, maravilhosa, lotada, todo mundo comprando e nenhum livro com desconto. A um dia da Bienal do Rio, vou dizer o contrário, não vai ter uma editora  que venda o livro pelo preço de capa.”

“Isso é um desastre. Não sou melhor que ninguém, também sou editor e se não der desconto na Bienal de São Paulo não vendo um livro. Criamos uma cultura que leva todos ao precipício. A Amazon é a  única que não fecha as portas porque não vive da venda de livros. Eles são usados para levar as pessoas para o site”.

Segundo ele a política de descontos foi um dos fatores na queda da Livraria Cultura, depois desta adotar a prática.“ O Pedro Herz não dava desconto, nem para os amigos. Dizia; ‘ amigo que é amigo não pede desconto.’”

Uma pesquisa apresentada por Diego  Drumond, vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro, mostrou que 55% dos 15 mil  brasileiros entrevistados compram on-line por causa dos preços menores. Segundo ele a conquista da pesquisa foi mostrar que se os preços fossem os mesmos em todos canais de venda, a maioria iria dar preferência às  livrarias.

Na segunda metade da convenção, a ideia da autoregulação do mercado com o seu saneamento antes da aprovação da Lei Cortez ganhou propostas concretas. Um relatório apresentado pela Book Info com os lançamentos dos últimos meses mostrava os preços praticados  por diversos agentes do mercado.

Julio  Cruz, da Catavento Distribuidora incentivou que o acordo de cavalheiros seja colocado em prática , a princípio por três meses, enquanto Alexandre Martins Fontes reforçou a proposta de ação repetindo o presidente norte-americano John Kennedy: “Não pergunte o que o seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo seu país.”

Na última mesa, que reuniu livreiros independentes, Benjamin Magalhães da Livraria Lima Barreto, do Rio, afirmou que a noção de mercado livre não é a que vivemos hoje, onde as regras são ultrapassadas com um ganho a mais, mas aquele em que as regras estão claras e servem para todos.

Para ele o mercado hoje está numa desordem total, esquece do médio e longo prazo, trabalha apenas a curtíssimo prazo o que o vai dilapidando: “Breve poderemos nos perguntar; onde estava aquele mercado livreiro? Acabou.”

Benjamin acredita que com o que foi proposto na Convenção se está retomando a civilidade, a palavra de honra, o acordo de cavalheiros, melhor que qualquer lei: “viver em uma cidade sem livrarias deve ser um cemitério. Elas são uma ágora, lugar onde se  encontra e discute num mundo tão difuso.”

Letícia  Bosisio disse que a sobrevivência da sua livraria, a Janela, no Rio, depende muito do ecossistema do mercado a partir de parcerias com as editoras. Que a Janela tem se tornado um aparelho cultural da cidade pela necessidade de sempre promover eventos, mas que no final o ganho é apenas com a venda de livros.

Marcos Gasparian, da Livraria Argumento, no Rio, levantou dúvidas sobre as promessas feitas no evento. Falou do trabalho solitário feito pelos livreiros em defesa da Lei Cortez com a menção do artigo do jornalista Elio Gaspari publicado contra ela nos jornais O Globo e Folha de São Paulo com o título A tunga dos livreiros.

“Nenhum editor se levantou para ficar do nosso lado, todo mundo ficou calado e nós tendo que nos defendermos. Nas redes somos massacrados pela esquerda e pela direita e nenhum editor se levanta para falar alguma coisa.”

Gasparian lembrou a entrevista do editor Luiz Schwarcz, no último dia 19, no programa Roda Viva, da TV Cultura: “ quando ele foi perguntado pela Lei Cortez, e era fundamental dar apoio,  saiu pela tangente, absolutamente em cima do muro”.

“Tenho muitas razões para duvidar dessa parceria, sem querer parecer prepotente e arrogante. Quero assistir mais a esse filme  para ver se vai nesse caminho virtuoso que se ensaiou aqui,  que espero que se confirme, mas que vejo com muito ceticismo.”

Numa mesa em que se falou das livrarias como produtoras culturais, livreiros  da plateia como Paulo Escariz, da Livraria Escariz, em Salvador, reclamaram da má vontade das editoras em colaborarem com promoção de  eventos fora do eixo Rio/São Paulo.

Terminado o evento, Bernardo Gurbanov, ex-presidente da ANL, lembrou que em seu primeiro mandato, em 2016,  um ano após a proposição da lei que viria a se chamar Cortez, a entidade redigiu o Manual de Boas Práticas do Setor Livreiro, assinado por todas entidades do livro, à exceção do SNEL.

“Não devemos deixar de  reconhecer que o Brasil está na America Latina e que a cultura da transgressão é quase um valor nacional. Isso enfluencia a postura do consumidor e o disfuncionamento intrasetor, o disfuncionamento do ecossistema. Até agora prevaleceram os interesses particulares perante o coletivo,” concluiu.

Rita Peixoto, da Livraria Beco das Letras, no Rio, esteve pela primeira vez numa convenção e  destacou,  ao final do evento, a importância de ver que  os colegas livreiros têm uma perspectiva crítica sobre como funciona a cadeia do livro.

“Entendo  como é difícil, para muitos,  quebrar práticas que são um tiro no pé,”  disse ela , “não existe outra saída que a Lei Cortez. Ela não irá depender da posição pessoal de cada livreiro ou editor.”

Para o vice-presidente da Associação Estadual de Livrarias RJ, Ivan Errante, a convenção foi oportunidade de conversar, no intervalo, com os representantes do Ministério da Cultura, Fabiano Piúba e Jeferson Assumção sobre livrarias como pontos de cultura.

Recentemente sua livraria, a Belle Époque, conseguiu o título de ponto de cultura e ele espera que outras pequenas e médias livrarias sejam beneficiadas pelo governo: “Existe verba para isso, como foi dito na convenção sobre a Lei Aldir Blanc. Temos de nos unir, reivindicar, principalmente agora que o Rio é Capital Mundial do Livro.”

 

 

 

Kleber Oliveira

para AELRJ

16/06/2025